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Reporter. Writer. Radio and multimedia producer  | Currently in Lisbon, Portugal  | Updating...


Quando a arte desafia os símbolos de um país

Em 1984, Gregory Lee Johnson regou uma bandeira norte-americana com gasolina e pegou-lhe fogo. Johnson manifestava-se em Dallas contra as políticas de Reagan e contra algumas grandes companhias baseadas na cidade. Cinco anos depois, foi julgado por ter violado uma lei do estado do Texas que proibia a profanação de objetos respeitados e condenado a um ano de prisão e a uma multa de 2000 dólares.

O Supremo Tribunal (ST) dos EUA, para onde Johnson recorreu, deu-lhe razão, considerando que essa lei estadual violava o direito à liberdade de expressão consagrado na 1.ª Emenda à Constituição norte-americana. O estado do Texas recorreu para o ST, argumentando com a necessidade de preservar a integridade da bandeira como um símbolo da unidade nacional.

O tribunal superior considerou que esta questão levantava problemas ao nível da liberdade de expressão. O que estava a ser proibido não era o ato de queimar a bandeira em si, mas o conteúdo simbólico que estava por trás do ato. Na verdade, noutra lei estadual previa-se que as bandeiras fossem queimadas quando estivessem velhas de mais para serem hasteadas.

O episódio foi contado por Francisco Teixeira da Mota, advogado e autor do livro “A Liberdade de Expressão em Tribunal”, no dia 7 de fevereiro de 2003 no jornal Público e lembrado ao Observador a propósito do julgamento, segunda-feira dia 23 de junho, de um aluno do curso de Artes Visuais na Universidade do Algarve que apresentou, como trabalho final de uma unidade curricular, uma instalação em que a bandeira portuguesa aparece enforcada, com o título “Portugal na Forca”.

Um trabalho de fim de curso

Élsio Menau, 30 anos, trabalhou durante o primeiro semestre de 2012 no projeto final da disciplina de Laboratório de Artes Visuais, onde foi pedido aos alunos que realizassem uma obra de arte em espaço público, diz o artista plástico ao Observador.

Élsio Menau pensou numa peça que “fizesse as pessoas perceber” o “mau estado e a má situação do país a nível político e económico”, mas, para além disso, quis chamar a atenção para “o uso abusivo de bandeiras portuguesas” que muitas vezes “são bandeiras chinesas” e deformam as cores e os símbolos, diz Élsio Menau. Está a referir-se aos casos em que a representação do país – mesmo em cerimónias oficiais – é feita através de bandeiras portuguesas que, em vez dos tradicionais castelos, apresentam pagodes chineses.

O estudante de Artes Visuais colocou a forca com a bandeira portuguesa num terreno privado perto de Faro e fê-lo com “o consentimento do proprietário”, diz Élsio Menau, que realizou um vídeo com todo o processo e conseguiu a classificação de 18 valores, “a melhor nota do curso na disciplina”, diz.

Para além da instalação da bandeira enforcada, Élsio Menau diz que o projeto incluía ainda outra obra “de que ninguém fala” e que é mais “defensora do país”, explica o jovem, sublinhando que não concebeu a bandeira na forca para ser um insulto.

Élsio Menau criou também a figura do Super Tuga, um “super herói sem qualquer poder para além da voz” e da capacidade para tentar “desenrascar-se como qualquer outro português”, diz. O artista plástico já vestiu o fato desse herói, mas diz que o Super Tuga pode ser ele ou “qualquer um”.

Poucos dias depois, militares da GNR retiraram a bandeira da forca e acabaram por chamar o autor para ser identificado na Polícia Judiciária (PJ). O autor explicou ao Observador que só foi chamado pela PJ depois do dia 5 de Outubro de 2012, quando, durante as celebrações da República, nos Paços do Concelho, Cavaco Silva içou ao contrário a bandeira nacional. Élsio Menau pensa que a polícia só atuou nessa altura porque algumas cenas do vídeo que realizou para a faculdade foram incluídas num videoclip do grupo de hip-hop “Tira Nódoas”, que teve alguma divulgação nas redes sociais.

Élsio foi acusado de crime público por ultraje contra símbolos nacionais, que tem prevista uma pena de prisão até dois anos, de acordo com o nº 1 do artigo 322 do Código Penal.

“Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”

No julgamento de segunda-feira, o Ministério Público (MP) pediu a absolvição do artista plástico, mas a sentença só será conhecida no dia 7 de julho.

O jornal i revela este sábado alguns pormenores sobre a estratégia de defesa do advogado de Élsio Menau, Fernando Cabrita, que se ofereceu para defender o artista plástico. Segundo o jornal, este advogado já tinha defendido um imigrante americano acusado por ter dito que Ramalho Eanes e Ronald Reagan eram “uns bandidos”, conseguindo a absolvição deste. Fernando Cabrita insistiu em tribunal que o “Portugal Enforcado” de Élsio Menau era “um exemplo de manifestação de indignação”, escreve o i.

Para Francisco Teixeira da Mota “é normal” que alguns cidadãos fiquem incomodados e se queixem. Já não tão normal foi o facto de a GNR ter apreendido o material, o que, nas palavras do advogado, “é grave”. Mesmo assim, continua o jurista, o caso “devia ter sido arquivado”

Ao ouvir a referência à história de Élsio Menau, Francisco Teixeira da Mota disse ao Observador que a decisão do Supremo Tribunal norte-americano no caso Texas contra Johnson “estabeleceu o precedente” para casos semelhantes. “Não há povo que goste mais da bandeira do que o povo americano”, diz o advogado.

Um dos juízes do ST, o conselheiro Kennedy, um conservador nomeado por Reagan que votou a favor da inconstitucionalidade da proibição, começou a sua declaração de voto dizendo que por vezes é necessário tomar decisões de que não se gosta. Ainda assim, o tribunal supremo decidiu, com cinco votos a favor e quatro contra, pela liberdade de expressão.

A sociedade civil não deve ser uma caserna

Lembrando este episódio, Francisco Teixeira da Mota diz que o que aconteceu com Élsio Menau “não tem sentido” e que se trata de “um fait divers triste porque não devia ter chegado a julgamento”. Para o advogado, “é normal” que alguns cidadãos fiquem incomodados e se queixem. Já não tão normal foi o facto de a GNR ter apreendido o material, o que, nas palavras de Francisco Teixeira da Mota, “é grave”. Mesmo assim, continua o jurista, o caso “devia ter sido arquivado”.

O penalista Manuel Costa Andrade explica ao Observador que, antes de se avançar para um processo judicial, é necessário verificar se existe ou não ultraje. Para Costa Andrade só se deve questionar se houve ultraje dos símbolos nacionais em “casos inequívocos que chocam toda a sociedade”, como quando há profanação desses símbolos “ao queimar-se ou ao espezinhar-se uma bandeira em manifestações públicas”, diz.

Mas Costa Andrade pensa que mesmo nesses casos é necessário discutir-se “a liberdade de criação, de expressão, de caricatura e a liberdade de expressão política”.

Para o penalista, é “mais do que duvidoso” que exista no trabalho de Élsio Menau “a nota de ultraje que degrada os valores de uma comunidade”, ou que o artista tenha tido a “intenção de ultrajar os símbolos nacionais”.

“Todos nós temos de respeitar os símbolos, mas a sociedade civil não deve ser uma caserna onde se está sempre a fazer continência à bandeira, ao Presidente da República…”, diz Costa Andrade.

Houve outras situações em que comportamentos considerados insultuosos para com os símbolos nacionais e a República geraram polémica. Como escreve este sábado o jornal i, o advogado de Élsio Menau fez referência a alguns deles durante o julgamento. Fernando Cabrito lembrou, por exemplo, o caso de João Grosso.

Em dezembro de 1987, o ator João Grosso apareceu na RTP, num programa televisivo vocacionado para o público jovem –Fisga – a cantar o Hino Nacional em estilo rock. O programa foi suspenso e João Grosso processado. Ao Observador, o ator disse que essa atuação pretendia fazer “uma crítica construtiva sobre a organização do país e mostrar como a juventude era desaproveitada”.

Sobre a polémica que esse episódio gerou, levando à suspensão do programa e terminando num processo a João Grosso, o ator diz que se tratou de “uma operação de censura que deixou toda uma equipa – que maioritariamente trabalhava a recibos verdes – absolutamente pendurada”. Nesse momento, diz, “a responsabilidade moral” recaiu sobre ele.

João Grosso aponta o dedo ao primeiro-ministro da altura: “O Governo de Cavaco Silva era não permissivo, para mim a direita não é permissiva a nível ideológico e criativo”. O ator acabou por ser absolvido, mas diz que “infelizmente não foi indemnizado”. Até porque, entre dezembro de 1987 e junho de 1988, não teve trabalho. “Tinha trabalhos que estavam agendados, mas que foram cancelados por receio”, diz João Grosso.

Toda a experiência, diz, foi traumática e teve consequências na sua “frescura criativa e na vontade de arriscar”. “Durante algum tempo – bastante longo – cada vez que ia fazer alguma coisa punha essa questão a mim mesmo. Pensava: ‘Não estou num Estado em que é possível falar livremente das coisas, com ironia, com subtileza…”

João Grosso desvaloriza a questão da proibição legal de “ultrajar” os símbolos da República e tem uma interpretação muito própria sobre o assunto: “Os símbolos nacionais são as vidas das pessoas dentro da nação. Se não há respeito pelas pessoas de que vale ter respeito por um bocado de tecido, por uma canção ou por um poema que incita as pessoas à guerra? Ou de que vale ter respeito por uma pessoa que é Presidente da República e pode não velar pelas pessoas da nação?” O ator não tem dúvidas: “Os constituintes da nação são o seu verdadeiro símbolo”.

“Palhaço” arquivado

Em 2013, o jornalista Miguel Sousa Tavares chamou “palhaço” a Cavaco Silva. “Nós já temos um palhaço. Chama-se Cavaco Silva. Muito pior do que isso, é difícil”, disse quando lhe perguntaram se em Portugal poderia existir um fenómeno como o de Beppe Grillo (comediante italiano que concorreu às eleições legislativas em 2013 e acabou por ficar em terceiro lugar).

Segundo Pedro Mexia, apesar de a ofensa aos crimes nacionais ser um crime previsto por lei, “acaba por ser uma questão semelhante ao atentado ao pudor”, que está previsto em todos os códigos, mas que é “de utilização pouco comum”. Isto porque a noção de pudor começou a ser questionada muito por causa da “exposição que temos à internet e à publicidade” e “caiu em desuso, sobretudo no que diz respeito à nudez e à sexualidade”.

A Procuradoria Geral da República (PGR) abriu um inquérito por considerar que as declarações do jornalista eram susceptíveis de integrar a prática do crime de ofensa à honra do Presidente da República, punível com pena até três anos. O Ministério Público acabou por arquivar a queixa de Cavaco Silva, considerando que não houve crime.

Pedro Mexia, crítico literário português, lembra também a acusação feita a Mário Soares de que este terá pisado uma bandeira nacional durante uma manifestação. O antigo Presidente da República negou que isso tivesse acontecido e não há provas dessa acusação. Mas “foi sempre usado como arma política” contra Soares, diz Mexia.

Segundo o crítico, apesar de a ofensa aos crimes nacionais ser um crime previsto por lei, “acaba por ser uma questão semelhante ao atentado ao pudor”, que está previsto em todos os códigos, mas que é “de utilização pouco comum”. Isto porque a noção de pudor começou a ser questionada muito por causa da “exposição que temos à internet e à publicidade” e “caiu em desuso, sobretudo no que diz respeito à nudez e à sexualidade”, diz.

Pedro Mexia acha que o mesmo se pode dizer dos símbolos nacionais. “Perdeu-se a cultura de deferência. Já não há respeito pelas figuras hierárquicas e de autoridade”, apesar de existir “um resquício na lei e no senso comum”.

No caso das ofensas ao Presidente da República, Pedro Mexia defende que, apesar de “fazer sentido do ponto de vista jurídico, à luz da lei que temos”, tendo em conta a realidade do discurso público, “torna-se quase impossível policiar isso”. O crítico está a pensar nos insultos e ofensas que lê muitas vezes no Facebook e no facto de não haver consequências legais para esses comportamentos: “Se se punisse o que se escreve nas redes sociais… É um faroeste absoluto em termos de ofensas.”

Para o crítico, o processo judicial de que Élsio Menau foi alvo “valoriza a capacidade interventiva do projeto” e a prova da sua eficácia “foi comprovada pelo Estado”, diz. “Quem sai mal desta imagem é o Estado que assim reage”.

Quanto à situação concreta da bandeira enforcada de Élsio Menau, Pedro Mexia diz: “Não é tão chocante como outras coisas que já vi”. O crítico literário acha que quando se trata de intervenções artísticas “deve haver uma latitude maior, porque não faz sentido haver arte sem liberdade de criação”.

A arte é por natureza transgressora

Delfim Sardo, diretor da Associação Internacional de Críticos de Arte em Portugal, diz que a “criação artística é por natureza transgressora”, utilizando muitas vezes “símbolos que pertencem ao património comum para de alguma maneira os subverter”. Apesar de o resultado destas criações poder ser, por vezes, considerado “constitucionalmente ofensivo”, o crítico de arte diz que isso não faz parte “da condição da arte na modernidade, que surge para interrogar o sentido comum” e não para celebrá-lo.

Apesar de não fazer juízos artísticos sobre a obra “Portugal na Forca”, Delfim Sardo considera “absolutamente caricato” que o jovem tenha sido julgado, ainda para mais quando a instalação em causa era um trabalho académico. Para o crítico, o processo judicial de que Élsio Menau foi alvo “valoriza a capacidade interventiva do projeto” e a prova da sua eficácia “foi comprovada pelo Estado”, diz. “Quem sai mal desta imagem é o Estado que assim reage”.

Delfim Sardo faz igualmente referência à forte ligação que os Estados Unidos da América têm com os símbolos nacionais e que, na sua opinião, está “mais enraizada” do que em Portugal. Segundo o crítico de arte, alguns dos momentos importantes da criação artística norte-americana do século XX surgiram a partir da utilização desses símbolos.

Fala das pinturas da bandeira que Jasper Johns fez depois de ter sonhado que pintara uma bandeira americana. A primeira vez que olhamos para Flag vemos uma bandeira norte-americana normal – símbolo que todos conhecem e que identificam de imediato. No entanto, uma visão mais atenta revela, por debaixo das pinceladas que compõem as 13 riscas e as 48 estrelas, recortes de jornais e manchetes noticiosas. Pedaços de histórias e fragmentos identitários, escondidos por camadas de tinta.

Ou da versão distorcida, hiper amplificada – como que fazendo lembrar sons de explosivos, de bombas e de helicópteros – do hino americano que Jimi Hendrix cantou no Festival de Woodstock, em 1969, considerada “um grande momento da música popular americana”, diz Delfim Sardo.

É esta natureza transgressora que leva Pedro Mexia a dizer que na arte se “podem dizer coisas que não podem ser ditas noutras circunstâncias”. Para o crítico, isto aconteceu recentemente com o vídeo de Adolfo Luxúria Canibal, “Horas de Matar”, em que o músico aponta com uma arma sobre vários políticos portugueses como Passos Coelho, Cavaco Silva, Paulo Portas, António Guterres ou Mário Soares, acabando por disparar contra outras figuras, nomeadamente padres e homens de negócios.

“Há coisas que seriam chocantes num comício, mas ditas numa canção são um objeto artístico”, defende Mexia. O crítico literário pensa que estes casos “não deviam ser perseguidos judicialmente” e defende mesmo que se equacione “a sensatez desta legislação” que, podendo ser justa e tendo algum sentido, “não deixa de estar um pouco morta”.

Francisco Teixeira da Mota acha que dentro de 100 anos, “haverá pessoas a queimar bandeiras e pessoas a dizer que as outras devem ser presas” e não acredita que a lei seja alterada. “Nenhum político vai correr o risco de dizer que é anti-patriota”.

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