Quando o barão Bodo von Bruemmer nasceu, o mundo de que deveria ser herdeiro estava prestes a desaparecer. Durante mais de seiscentos anos, a família Von Bruemmer vivera numa província da Rússia czarista no Báltico conhecida por Curlândia. Mas, em 1911, a ordem mundial começava a mudar. Em pouco tempo, um conflito mundial, uma série de atentados e uma revolução poriam fim a séculos de opulência e de tranquilidade para as famílias mais antigas da Europa.
Nas décadas seguintes, as fronteiras não voltariam a ser estanques, sobretudo naquela zona do Báltico, entre os interesses alemães e russos. Com o final da Primeira Guerra Mundial, a Curlândia passou a integrar a Letónia. Mas isso não significou a paz. Aos 7 anos, von Bruemmer partiu com a família para a Alemanha. «Os bolcheviques estavam a chegar e tínhamos de salvar a vida», recorda. O avô recusou juntar‑se a eles. «Ele dizia que aquela era a sua casa, que a sua família vivia em Riga há centenas de anos.» Foi assassinado.
Um ano depois, o pequeno von Bruemmer estava novamente de partida. O Tratado de Versalhes desfazia o império alemão e impunha a distribuição dos territórios pelos países vizinhos. «Um dia, o governo polaco disse: “Quem nasceu aqui pode ficar. Quem não nasceu tem de ir.” Fugimos de novo. A segunda vez em dois anos», recorda o barão, introduzindo pausas entre memórias dolorosas. «Estive em quinze escolas diferentes. A minha vida foi muito difícil, sempre a procurar uma nova base.» O tom da sua voz vai decrescendo, tornando-se progressivamente mais doce e desprotegido. «Nunca estive em casa».
À questão «qual é a sua nacionalidade», Bodo von Bruemmer começa por dizer que «é um homem livre, sem país». Só depois acrescenta, com um formalismo quase burocrático, «alemã e suíça». Em 1936, com 25 anos, era um cidadão alemão num país que se preparava para a segunda guerra em menos de vinte anos. Von Bruemmer teve uma meningite que lhe paralisou o corpo, impedindo‑o de cumprir o serviço militar e de se juntar ao exército de Hitler. «Aquela doença salvou‑me», diz. Sobreviveu‑lhe e iniciou uma forma peculiar de se relacionar com o corpo, dialogando com ele, lendo os sinais e, quando necessário, pedindo‑lhe que este o poupasse. «Disse à meningite: “Vai‑te embora!” Nunca podemos desistir. Temos de dizer ao nosso corpo: “Faz o que puderes, por favor.”»
Von Bruemmer, que trabalhou em seguros e na banca, primeiro na Alemanha e depois na Suíça, diz: «Sempre me senti um sem‑abrigo.» Nos anos 1960 recebeu um diagnóstico fatal. Cancro do pâncreas. Os médicos disseram‑lhe que não viveria mais de dois anos. Julgando estar condenado, quis preparar a vida da mulher, Rosário, arranjar uma casa para a futura viúva, dar‑lhe o lar que ele sempre procurara. Num jornal encontrou um anúncio de venda de uma quinta em Portugal e convenceu Rosário a voarem até cá. «No momento em que aterrei… este cheiro…», diz, recordando a impressão subtil e fugaz que marcou um novo recomeço. «Disse: “Acho que este é o meu país.”» «Estás louco», respondeu‑lhe ela, no meio do aeroporto. «O que podes cheirar além do querosene?» Mas Von Bruemmer não estava enganado. «Aqui foi a primeira vez em que não me senti um sem‑abrigo».
Em Colares, o barão encontrou uma ruína. «A propriedade estava toda destruída. Era como uma antiga beleza devastada», diz. Passou um ano até conseguir comprar o Casal Santa Maria, na aldeia de Casas Novas, em Colares. «Durante anos, arranjámos a casa, construímos… Só passados cinco anos estava tudo pronto.» E o cancro? «Continuei a viver», diz. Negociou com o corpo um novo prolongamento.
Disse à meningite: “Vai‑te embora!” Nunca podemos desistir. Temos de dizer ao nosso corpo: “Faz o que puderes, por favor.
Quase com 60 anos, o barão começou uma vida em Portugal, criando novas memórias. Como a da celebração do primeiro Natal na quinta onde se juntaram familiares e amigos, vestidos formalmente para festejar. «A chaminé não ficou bem feita e só descobrimos naquele momento. Ficámos de fraque com os rostos cobertos de fuligem», ri. Ou como daquela vez em que se juntou aos Bombeiros de Colares porque estava preocupado com os incêndios que ameaçavam a região, e teve de abandonar o convidado do jantar, o pai de Juan Carlos, futuro rei de Espanha. «Ouvi a sirene, subi as escadas e desci todo equipado. Disse‑lhe: “Desculpe, mas é o meu dever.”»
Com o 25 de Abril, Von Bruemmer confessa que chegou a temer que aquilo que aconteceu em 1918 na Letónia se repetisse. Nessa altura, os colegas bombeiros impediram que a casa fosse ocupada. «Este é o nosso homem», disseram. Depois de décadas em busca de uma casa, o barão encontrou no Portugal rural um abrigo onde conseguiu recriar um mundo e uma tranquilidade que julgara perdidos.
A casa principal do Casal Santa Maria é composta por amplos salões luminosos, onde a lareira se mantém acesa. A longa mesa de madeira escura está posta para doze pessoas. Uma elegante escadaria branca, réplica da que existe no Palácio de Seteais, dá acesso ao piso de cima, dos quartos. Das paredes pendem tapeçarias antigas e retratos a óleo de figuras da nobreza europeia. As poltronas e os cortinados são feitos de tecidos que se assemelham a brocados. Há armários envidraçados cheios de serviços de prata. Os funcionários interpelam Von Bruemmer com deferência, referem‑se ele como «o senhor barão». É como se de algum modo esta fosse a casa que ele deixou para trás em 1918. Um último reduto daquela idade de ouro estilhaçada. Um santuário esquecido no meio de Portugal onde a família Von Bruemmer pôde prosperar. Nas escrivaninhas e nas mesas de café, atropelam‑se as molduras com fotografias de todos os membros da família – alguns mortos há muito, outros captados recentemente em batizados e casamentos – imagens do dia em que Mário Soares visitou a quinta, retratos dos cães que fizeram ou ainda fazem companhia ao barão.
Por todo o lado, há vestígios de Rosário, a mulher de Von Bruemmer, que morreu em 1994. Posters e imagens que fazem referência às duas principais atividades do casal nesta propriedade – a criação de cavalos árabes e o cultivo de milhares de pés de rosas. «Ela era uma mulher muito especial», diz Von Bruemmer, orgulhoso enquanto olha para um retrato em close‑up da falecida mulher, uma figura algo extravagante com um gigantesco chapéu, fumando uma cigarrilha.
Depois da morte de Rosário, Von Bruemmer abandonou a criação dos cavalos árabes, mas continuou a gerir as empresas que detém na Suíça, o que, aliás, faz ainda hoje, com 104 anos. Em 2007, teve de desfazer‑se de alguns pés de rosa para dar lugar a um novo projeto, imaginado e desenhado a partir de uma cama de um hospital na sequência de uma cirurgia. Aos 96 anos, encontrou novamente a força e o ânimo para destruir e construir, para começar de novo, para pensar uma nova vida, que em nada se assemelhava às anteriores. «Alguém me deu a ideia, falando‑me ao ouvido enquanto eu estava sob o efeito da anestesia», diz o barão, que nutre um fascínio pelo desconhecido e prefere não encontrar demasiadas explicações. «Tudo é destino», continua. Nesse dia, perguntou ao médico quanto tempo teria de ficar no hospital. O médico respondeu‑lhe que tudo dependia do corpo. Então, Von Bruemmer falou novamente ao corpo, pedindo‑lhe que se apressasse porque queria plantar uma vinha no Casal Santa Maria.
«Em 2010, produzimos o primeiro vinho. Agora já temos 13», diz, agitado como uma criança perante uma novidade. Os vinhos do Casal Santa Maria têm sido premiados em todo o mundo. «Não consigo compreender o sucesso deste vinho. É extraordinário. Como é possível?», diz, com a mesma pueril ingenuidade com que se interroga sobre a sua longevidade.
Mas, tal como atribui os 104 anos à relação que desenvolveu com o próprio corpo, recorre a uma mistura de explicações orgânicas e a imagens místicas para falar do vinho que se produz aqui, nestes nove hectares que compõem a vinha mais ocidental do continente europeu. «Temos um terreno único. Metade da nossa vista é para o oceano. Do outro lado temos a floresta. O solo tem uma variedade incrível de minerais e é composto pelo adubo de todos os animais – vacas, porcos, cavalos – que aqui estão há quarenta anos e que fizeram desta uma terra especial. Não se encontra isto em lado nenhum», diz, convencido de que o vinho do Casal Santa Maria é «absolutamente fantástico». «Ninguém fica com dor de cabeça ao bebê‑lo», garante, apesar de ter deixado de consumir vinho assim que se tornou produtor, bebendo com muita moderação.
A nova vida de Von Bruemmer como produtor de vinhos também se traduziu numa nova vida para o Casal Santa Maria, onde trabalham nove pessoas, entre empregados, a secretária do barão e dois enólogos. O enólogo chefe é Jorge Rosa Santos. «O senhor barão sobe escadas, desce escadas, faz pagamentos, gere as empresas», diz este, ao mesmo tempo que mostra uma nova campanha publicitária que precisa da aprovação de Von Bruemmer. «Almoçamos juntos quase todos os dias e é aí que tomamos as grandes decisões quanto aos vinhos», continua, antes de ser interrompido pelo barão. «Comer junto é tão íntimo como dormir junto», diz, em inglês. Estes almoços e as discussões em torno do negócio impedem que Von Bruemmer se sinta sozinho. «A minha mulher morreu em 1994, a minha irmã morreu em 1995. A minha cadela Trixie morreu em 2008. Fiquei totalmente sozinho. Tenho uma filha de 73 anos e um neto, mas eles quase nunca me visitam. No entanto, nunca me sinto só. Sinto a presença da minha mãe e da minha mulher nesta casa. Elas estão sempre comigo. E tenho estes almoços.»
Acho que vivi a minha vida da forma correta. Acho que fiz as coisas bem feitas.
Em 2011, Von Bruemmer foi operado novamente. Os médicos garantiram‑lhe mais uma vez que não iria sobreviver. Perguntaram‑lhe se queria morrer em casa ou no hospital. «Não lhes respondi. Liguei ao motorista, o Jacinto, e pedi‑lhe que me fosse buscar e me trouxesse para casa.» Agora, sempre que visita o médico ouve apenas: «Você nunca morre. Tem um contrato especial.»
Von Bruemmer decidiu recentemente dar nomes às doenças, personificando‑as. À mais recente chama de «Bruxa» e diz‑lhe: «Podes viver aqui. Não te sirvo o pequeno‑almoco, mas podes viver aqui. Mas tens de saber que, se eu morrer, tu morres primeiro do que eu.» Há algo na forma como fala, dirigindo a expressão para alguém que não está na sala, que deixa perceber que se concentra de facto nestas negociações com a morte. «Eu tive quatro vidas. Gostava de ficar mais dez anos, mas não sei se o corpo aguenta ou se me vai dizer: “Acabou‑se, amigo.”»
Apesar de estar quase cego e de ter de se aproximar à distância de um palmo daquilo que quer ver, Von Bruemmer continua a ler os filósofos clássicos e os jornais do dia. Sente uma necessidade voraz de estar atualizado e de saber mais. Tem um fio em torno do pescoço ao qual está presa uma lupa que usa para ler. «Sou muito curioso. Todos os dias compreendo coisas novas. E gosto de ficar mais velho porque aprendo mais e mais», diz. Depois, revela alguma vulnerabilidade: «Acha que sou pouco moderno, que estou pouco atualizado?» E prossegue com considerações sobre o futuro da Europa, o aquecimento global ou a corrida para Marte. «Como vão escolher aqueles que vão viver para lá quando a Terra acabar?»
No final da conversa, ganha novo ânimo e fala com espanto de mais uma mudança. Está convencido de que está a recuperar a visão. «Acho que estou a ficar melhor. Aos poucos vou conseguindo ver vultos», diz, inabalável. Conserva a virtude sem perder o senso comum, como no poema de Kipling. «Acho que vivi a minha vida da forma correta. Acho que fiz as coisas bem feitas», diz Von Bruemmer. «Não tenho o nariz empinado. Estive sempre no meio.»