Eu não me sinto isso… Não sinto! Foi um azar. Nunca quis matar ninguém. Não era minha ideia matar. Nunca foi.” Simão Martins Barata, 47 anos, não é capaz de dizer a palavra “criminoso”. Quando a ouve, fica desconcertado. Passa os dedos pelos olhos, exausto. O conflito interno ganha voz. “Há pessoas que levam três ou quatro tiros e vivem.” As frases ficam incompletas. “Foi uma picadela…” Simão diz que não com a cabeça. Quer preencher de uma vez os espaços vazios. “Não gosto… Não sou.”
Na madrugada de 5 de Julho de 2005, Simão Martins Barata estava num bar na zona antiga de Castelo Branco. O dia foi quente e a noite continuou abafada. Simão acabou o trabalho e quis tomar um copo com três amigos, Conceição, Paula e Carlos. Quando, por volta da meia-noite, João Carlos Ribeiro entrou acompanhado pela companheira e pelas filhas dela, Simão já tinha bebido mais de dois litros e meio de vinho.
Simão garante que nunca tinha falado com João, que só o conhecia de vista. Não gostou de ver as crianças, de cinco e oito anos de idade, cheias de sono, adormecendo sobre as mesas. Encorajado pela bebida, comentou em voz alta: “Já não são horas para ter aqui as crianças.” João mandou as filhas da companheira para casa e disse para Simão: “Vou partir-te as trombas e fazer-te a folha.” João entrava e saía, e quando passava por Simão, ameaçava-o: “O que é para te fazer a folha já tenho aqui no bolso.”
João Carlos e a companheira regressaram ao bar e estiveram até à 1h40 a beber, junto do balcão. Antes de sair, João disse a Simão que o esperava lá fora. Depois, seguiu no sentido da Sé. Simão e os amigos deixaram o bar às 2 da manhã. O caminho que tomaram para regressar a casa, pela Rua dos Ferreiros, foi o oposto.
Mas João viu-os e correu na sua direcção.
Foi tudo muito confuso. Acordar preso porque matei. Matei? Quem é que matei?
Simão Martins Barata, na altura com 39 anos, trabalhava como montador de balcões frigoríficos numa fábrica na zona industrial de Castelo Branco. Tinha um salário modesto, mas suficiente. Vivia com os pais, mas sonhava ter uma namorada, casar. Queria juntar dinheiro para comprar “um carrinho”. Gostava de beber. Começou pelas cervejas com os amigos quando tinha 13 anos. “Da cerveja passa para o whisky e é assim…” Mas Simão nunca pensou que podia ser alcoólico. A mãe dizia-lhe que por causa da bebida havia de ficar caído numa valeta. “Não foi numa valeta”, corrige Simão, “foi numa prisão”.
No dia 6 de Julho, Simão foi detido preventivamente no Estabelecimento Prisional Regional de Castelo Branco. Sabia pouco sobre aquele sítio. Ouvira falar “das doenças”. A cela onde viveu durante dois anos (em 2007, a prisão de Castelo Branco mudou de instalações) tinha cerca de 15 metros quadrados e espaço para um beliche de três camas. No canto, um lavatório em pedra e uma pequena mesa. Por debaixo desta, um balde higiénico. Nenhuma das 31 celas da prisão tinha retrete. Simão fala do nojo que sentiu, de não conseguir tocar nas superfícies, dos amigos que tinham tanto nojo como ele e que nunca o foram visitar. “Aquelas paredes a escorrer água… a humidade… Não, não, não. É muito mau.”
Durante os três primeiros dias não acreditou que aquilo lhe acontecia. Simão estava em choque. “Foi tudo muito confuso. Acordar preso porque matei. Matei? Quem é que matei?”
“Ainda bem que fui preso”
João Carlos chegou à Praça Camões. Paula tentou travá-lo, mas foi empurrada, ficou caída no chão. João avançou, então, para Simão, gritando: “Oh meu sacana, é hoje que te mato.” Deu-lhe socos em todo o corpo. Simão reagiu. “Murros para ali, pontapés para aqui.”
No bolso, Simão tinha um canivete suíço. “Um chega para lá… Aquela agressividade que veio não sei de onde. Ele era mais forte.” Simão bate com a mão esquerda no lado direito do peito. “Levou uma picadela.” Um golpe na região do hemitórax direito de João Carlos Ribeiro, orientado da direita para a esquerda, da frente para trás e ligeiramente de baixo para cima – lê-se no processo.
Quando Carlos consegue, por fim, separá-los repara que tem a camisola encharcada de sangue. Simão e os três amigos afastaram-se. João ficou para trás. Ferido, mas com vida, disse: “Anda cá, cobarde. Eu mato-te.”
João faleceu horas mais tarde, no hospital. Simão foi julgado em Abril de 2006. O tribunal não deu como provado que tivesse agido com intencionalidade, uma vez que, segundo o acórdão, no ataque, Simão “não procurou o lado esquerdo, zona do coração”. Foi condenado a oito anos de prisão, a pena mais leve para casos de homicídio simples. A pena poderia ser mais branda, mas, tal como ficou escrito no processo, o colectivo de juízes não pôde ignorar que Simão abandonou a praça, deixando para trás João, ferido.
Simão esperava mais tempo. Não se sente um criminoso. Mas, por mais justificações que dê a si próprio – o álcool, o azar, a autodefesa -, a verdade é que Simão matou um homem. “Ainda bem que fui preso. Sempre achei que tinha de ir. Muita gente achou que eu estava inocente. Eu sempre senti culpa. Nunca me senti inocente.” Desde essa noite, nunca mais voltou a beber. “Não entra cá.”
Com o tempo, os pormenores foram ficando mais nítidos. Lembrou-se de tudo. Revoltou-se. Tentou encontrar respostas em vão. “Éramos quatro pessoas. Como é que ninguém conseguiu evitar a tragédia?”, “Foi só uma picadela. Porquê?”, “Podia ter sido eu?”
Para Simão, a gravidade do crime que cometeu tornou mais difícil aguentar a pena. “As pessoas que roubam, se calhar até levam aquilo da melhor maneira. O meu crime não foi um roubozinho. Foi um crime de sangue.”
Simão não podia deixar de observar o que se passava à sua volta. Imaginamo-lo a um canto, assustado, sem acreditar no que os seus olhos viam. Homens que batiam com a cabeça nas paredes, que espetavam pregos no próprio crânio, que cortavam os pulsos. Ter-se-á reconhecido no olhar vazio dos outros prisioneiros? O que é que pensou? “Que tinha entrado mas não saía.” Ele viu as cenas de pancadaria. Sabia dos cadáveres pendurados nas celas.
Como se algo tivesse acordado
Simão percebeu que tinha de se manter ocupado. Lavou casas de banho, corredores, gabinetes. Trabalhou nos serviços administrativos. Com outro preso, aprendeu a fazer tapetes de arraiolos. E desenhava. Mulheres cujas fotografias tirava de revistas, auto-retratos. Um grande desenho da sua mão esquerda, onde se vêem as veias, salientes, como se fossem raízes, e uma fénix renascida. “Era nesta mão que estava o canivete. Esta mão matou mas não ficou suja de sangue” – segundo ele, a mão que segurava a navalha não ficou com vestígios do crime.
As pessoas que roubam, se calhar até levam aquilo da melhor maneira. O meu crime não foi um roubozinho. Foi um crime de sangue
Quando, em Setembro de 2005, começou o ano lectivo, foi o primeiro a inscrever-se na escola. Tinha o 6.º ano de escolaridade. Através do programa Novas Oportunidades, fez o 12.º. Talvez mais importante do que ter concluído o ensino secundário: na escola, Simão começou a ler.
Até aí, lia o Correio da Manhã. Os últimos livros em que tinha tocado foram os manuais escolares do 6.º ano. Um dia, na biblioteca da prisão, escolheu um dos livros de Harry Potter. Leu metade. Não gostou. Devolveu. As professoras da escola disseram-lhe: “Você vai começar a ler.” Uma delas emprestou-lhe o Ensaio sobre a Cegueira.
Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para uma zona onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
Foi imediato. Como uma epifania. Simão nunca tinha vivido nada assim. Viu as luzes amarelas, verdes e vermelhas. Ouviu as buzinadelas dos condutores. Sentiu a impaciência, a tensão. Quando a primeira personagem de Ensaio sobre a Cegueira cega, foi como se algo dentro de Simão tivesse acordado. “Fez a campainha” – e os seus olhos iluminam-se. “É mesmo disto que tu precisas, Simão.”
Ainda agora, maravilhado: “Ele fica cego sem mais nem menos!!!” Simão avançou, vírgula a vírgula. “Este Saramago é doido para contar histórias.” Simão não elabora grandes explicações. Não vai teorizar sobre a obra do Nobel português. O encontro com Saramago foi uma daquelas coisas que “não dá para explicar. Sentimos… Sentimos…”
Devolveu Ensaio sobre a Cegueira às professoras e elas trouxeram-lhe outros, das suas colecções pessoais.Memorial do Convento foi o segundo. “E ainda bem.” Explica que se tivesse lido primeiro o romance sobre a construção do Convento de Mafra teria ficado por ali. “É muito difícil.” Mas Ensaio sobre a Cegueira abriu uma porta. Deixou-o familiarizado com o ritmo e com a linguagem e fê-lo não querer parar de ler histórias. Gostou de todos os que se seguiram. Foram 12, no total: O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Todos os Nomes, A Caverna, O Homem Duplicado, O Ano da Morte de Ricardo Reis, As Pequenas Memórias, Levantado do Chão, A Jangada de Pedra, Manual de Pintura e Caligrafia, A Viagem do Elefante.
Durante os anos em que esteve preso, leu cerca de 60 livros. Apontou todos os títulos num pequeno caderno. Gente Feliz com Lágrimas, de João Melo, A Queda de Um Anjo, de Camilo Castelo Branco, A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, O Velho que Lia Romances de Amor, de Luís Sepúlveda… Fez as contas: “Dá uma média de um livro por mês. Para quem nunca tinha lido na vida, eu acho que é óptimo.”
Já não conseguia adormecer sem ler. Uma noite, a lâmpada do pequeno candeeiro que tinha à sua cabeceira fundiu-se. “A confusão que foi na prisão para encontrarem uma lâmpada… Andou tudo a ver da lâmpada. É que senão eu já não dormia.” Simão não sabe como teria passado os anos de prisão sem os livros. “Não posso imaginar… A gente, ao ler, estamos presos mas a mente não está lá dentro. Foi isso que me fez aguentar.”
Gostou de quase todos os autores. Mas de nenhum como de Saramago. Nas palavras do escritor, encontrou conforto. Companhia. E uma sensação familiar. “Quando estava a ler o Saramago, lembrava-me do meu avô. Ele não sabia ler nem escrever, mas era capaz de estar uma noite inteira a contar histórias.”
Por vezes não lhe apetecia ler. Nessas alturas, entretinha-se a copiar para uma folha de papel excertos dos livros de Saramago, aproveitando para aperfeiçoar a letra manuscrita. Pequenas frases –Cipriano Algor é oleiro de profissão e tem sessenta e quatro anos, posto que à vista pareça menos idoso ou não há nada que se pareça menos com uma zebra, porém assim lhe chamam – escritas em letras arredondadas, com as dimensões correctas. Como se tivessem sido desenhadas num daqueles cadernos de duas linhas usados pelas crianças na escola primária. O manual de caligrafia de Simão.
Coleccionou excertos desconexos, nomes de personagens, títulos dos livros de Saramago. Olhou para aquelas palavras, transcritas de forma impecável, e pensou que talvez fosse capaz de criar uma história.
A carta
A personagem principal da história de Simão é o pensamento. Essa força poderosa que, ajudada pelos livros, chega a todo o lado. Mesmo quando o corpo não pode deixar aquelas quatro paredes húmidas. O pensamento de Simão “divagou pelos livros de Saramago” e “voou, voou, e voou na passarola, lá nos altos céus de Mafra, mirando a imponente obra do Memorial do Convento, para companhia, Sete-Sóis levava”, mas voou tanto que ficou “caduco”. Então, “propôs-se a percorrer o caminho até à Conservatória Geral do Registo Civil, onde Todos os Nomes, os dos vivos e os dos mortos, estão arquivados em pastas nas prateleiras, nos fundos da Conservatória, mas o trajecto para o Registo Civil foi longo, quando chegou, o sol passara para lá do telhado. Resolveu então, o pensamento faz coisas… Adiante… ir bater na porta do funcionário público, senhor José, funcionário competente, metódico e dedicado, expondo-lhe o problema da sua caducidade”. Depois desse encontro, o pensamento de Simão “iniciou uma viagem há muito agendada, palmilhou os caminhos doEvangelho segundo Jesus Cristo. Por terras distantes andou, o desconhecido conheceu, um dia até se cruzou com Maria Madalena, mulher que dormia com Jesus. Anos mais tarde regressou, trouxera dentro de si uma sede descomunal, dos sabores, dos aromas da água e cantares da sua terra”.
Simão termina desta forma a sua história: “Nunca mais o pensamento quis perder aquela sensação de euforia, de viver e olhar um mundo melhor. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
A gente, ao ler, estamos presos mas a mente não está lá dentro. Foi isso que me fez aguentar
No verso de uma das páginas, Simão incluiu um desenho. A carvão, desenhou Saramago olhando para Pilar, a mulher, que tem a cabeça apoiada no ombro do escritor. Baseou-se numa fotografia que encontrou numa das revistas que chegavam até ele sempre que havia uma reportagem ou uma notícia sobre o Nobel da Literatura. “Fiquei emocionado com a expressão dele. Na altura estava muito doente. Aquela expressão da cara dele…. Calhou bem porque tem a Pilar ao ombro. Dá-me impressão… ele pode estar feliz por dentro, mas a expressão da cara dele é uma expressão de sofrimento.”
Simão entregou a sua história às professoras, como uma forma de agradecimento por lhe terem emprestado os livros, por lhe terem ensinado tanto. As professoras disseram-lhe: “Você já escreve à Saramago” e insistiram com Simão para que enviasse uma carta ao escritor. Mas Simão tinha vergonha. “Escrever ao Saramago? O prémio Nobel? Quem é que sou eu ao lado dele?” As professoras queriam que Saramago conhecesse Simão e, com a sua autorização, enviaram a história para Lanzarote.
Em Julho de 2008, o subdirector da prisão mandou chamar Simão. “Então, mas agora anda a falar com os Nobel? Quem é que você é?” “Quando ele disse Nobel, mandei um salto. Soube logo que tinha chegado qualquer coisa para mim”, lembra.
Recebeu um exemplar de As Pequenas Memórias autografado por Saramago e um pequeno cartão da Fundação, assinado por Rita Pais onde esta escrevia: “José Saramago leu o seu texto e todos os materiais que teve a gentileza de enviar, através da iniciativa das suas professoras. Aqui vai um livro autografado por ele, com os seus votos de que a sua vida lhe reserve tudo de bom.”
Para Simão, foi suficiente. “Foi um espectáculo. Ali dentro a mínima coisinha tinha muito valor. Eu escrevo meia dúzia de linhas… É um escritor com Nobel!”
Simão Martins Barata sempre achou que muitos olhavam para ele e viam um homicida, um criminoso. Ele nunca se sentiu “isso”. Agora, Saramago conhecia a sua história, escrevera-lhe uma dedicatória. Escrevera o seu nome. Simão não podia estar errado.
Durante uns dias, não se falou de outra coisa na prisão. Deixaram de lhe chamar Simão. Passou a ser “o Saramago”. “Os guardas diziam-me: “Olha o primo do Saramago.” Era Saramago para ali, Saramago para aqui.”
O mais difícil é não ter emprego
No dia 4 de Agosto de 2009, foi ouvido por uma juíza de instrução de penas do Tribunal de Coimbra que ia avaliar se Simão podia cumprir os quatros anos de pena que faltavam em regime de liberdade condicional. A juíza elogiou o comportamento de Simão. “Ficou impressionada por eu nunca ter tido um castigo e por ter ido à escola.” Só depois de ter ouvido cinco vezes a juíza dizer-lhe “vamos levar uma oportunidade”, é que Simão percebeu que ia sair.
Dois dias depois, estava fora da prisão. Foi para casa, onde os pais, apanhados de surpresa, não conseguiram parar de chorar. Simão não lhes tinha dito nada. Ele próprio não acreditava. “O juiz condena-me a oito anos, de uma pena que vai dos oito aos 16. E depois só apanho quatro. Acho que isto na cabeça de algumas pessoas… faz confusão de certeza. Na minha também fez.”
Simão comeu uma sopa feita pela mãe e depois foi passear por Castelo Branco. Nesse dia, os ciclistas da volta a Portugal passavam pela cidade.
Dois meses depois de Simão ter sido preso, o seu patrão enviou para casa dos pais uma carta de despedimento por abandono do posto de trabalho. Quando saiu, Simão foi até à fábrica, convencido de que ia recuperar o emprego. Não havia nada a fazer. A situação económica do país começava a deteriorar-se e o patrão disse-lhe que tinha pouco trabalho. Não havia lugar para ele.
Quando foi pedir o Rendimento Social de Inserção, explicaram-lhe que não tinha direito, uma vez que vivia com os pais e que as reformas destes eram suficientes para os três. Joaquim Barata Jesus, 78 anos, e Jaiminda dos Anjos Martins de Jesus, 78 anos, não chegam a receber, conjuntamente, 800 euros de reforma. O pai de Simão é doente. Em pouco tempo, teve uma trombose e um enfarte. Agora sofre de Alzheimer. Todos os meses, a família gasta grande parte desse dinheiro em medicamentos.
A minha carta passou por aquele processo e foi para a pilha do sim!
Para Simão, o mais difícil é não ter emprego. “Assim sem fazer nada, os dias custam a passar. Se não tiver nada que fazer, lá vem a história toda outra vez.”
Em Julho de 2013, chegou ao fim a liberdade condicional. A pena estava cumprida, mas Simão continua sem encontrar trabalho. Está em casa a maior parte do tempo, a ler ou de volta dos tapetes de arraiolos. Por vezes vai até ao centro da cidade para beber um café. Não vê muita televisão, mas lembra-se de ter chorado em frente ao televisor no dia em que Saramago morreu (18 de Junho de 2010). Vê filmes. Como a adaptação ao cinema do livro Ensaio sobre a Cegueira e o documentário José e Pilar. Gostou particularmente deste último. E de uma cena em especial. Pilar del Rio tem centenas de documentos à sua frente. Cartas de fãs, desenhos, uma receita de bacalhau… “Tudo isto são coisas que as pessoas fazem e mandam. É incrível”, comenta Pilar, “porque, depois, dá uma aflição enorme rasgar o que as pessoas fizeram”. Simão viu no ecrã as cartas rasgadas e aquelas que são postas de lado para ter resposta e reagiu instantaneamente: “A minha carta passou por aquele processo e foi para a pilha do sim!” Simão gostava de conhecer Pilar para lhe lembrar que a história dele tinha estado nas mãos dela.
O encontro
Na televisão, a perspectiva não é assim. Se a pessoa estiver atenta, vê que isto são bicos. “Eu estranhava o nome, mas agora percebi o motivo.” Simão Martins Barata, que não ia a Lisboa há dez anos, voltou com a Revista 2, no dia 17 de Outubro, para conhecer Pilar del Rio na Fundação José Saramago, no edifício quinhentista da Casa dos Bicos. É recebido por Ana Sousa Dias, directora de Comunicação da Fundação, que lhe mostra a exposição sobre a vida do escritor.
– Que idade tem, Simão?
– 47. Faço 48 em Novembro. Sou do mesmo signo que ele. Somos escorpiões. Eu faço a 8, ele fazia a 16.
– Qual é a sua profissão?
– Serralheiro civil. Fazia tudo o que tinha a ver com portas, janelas em ferro.
– Sabe que ele também foi… serralheiro mecânico.
– Também, também.
Até os pêlos levantaram!
Simão olha atentamente para as paredes. Perante a quantidade de livros expostos, lamenta: “Só tenho pena de não me ter dedicado à leitura mais cedo.” Ana Sousa Dias mostra-lhe as agendas onde Saramago detalhava a sua vida (os livros que leu, os filmes que viu, as reuniões que teve, as viagens que fez) e a secção dedicada aos avós, contando-lhe que o discurso de aceitação do Prémio Nobel começa com uma referência ao avô: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever.” No rosto de Simão, a expressão de quem já estava à espera. Ao longo dos anos, Simão foi procurando as afinidades, as ligações com Saramago. “A tal relação com o meu avô…”
Pilar chega, cumprimenta Simão, que lhe pergunta: “Está tudo bem, Pilar?” Continuam juntos a visita. Pilar mostra-lhe a parte da exposição dedicada à atribuição do Prémio Nobel e a respectiva medalha. “Até os pêlos levantaram!”, diz Simão, quando espreita pela fresta que revela a reconstituição do escritório de Saramago.
Na biblioteca da Fundação, Simão conheceu Ana Matos, neta do escritor, que lhe agradeceu por ter partilhado a sua história. Depois, dirigiu-se ao escritório de Pilar. Nesse momento, aparece uma mulher que soube da sua presença ali e que quis vir cumprimentá-lo. Trata-se de Rita Pais, a autora do cartão enviado a Simão. Rita lembra-se de ter lido a carta de Simão e de ter ficado muito comovida.
Simão e Pilar sentam-se lado a lado e Simão mostra-lhe a carta original.
– Lembro-me perfeitamente.
– Sou um homem livre.
– Livre e distinto.
– Sim, mudei um bocadinho. É muito forte. Fizeram as prisões para os homens e para as mulheres, mas não é lugar para ninguém.
– Não é lugar para ninguém e também não é para o que foram feitas.
No dia anterior, chegara à Fundação uma carta de uma mulher, presa em Espanha e que começou, na prisão, um grupo de leitura. “Uma mulher que não está livre, mas que está a encontrar um outro universo de liberdade”, explica Pilar.
Pilar prepara-se para entregar a Simão um saco com alguns livros de Saramago. Ana Sousa Dias interrompe.
– Em vez de lhe oferecermos isto, queríamos oferecer-lhe a obra toda do José. Como é que vai para casa?
– Eu não ouvi nada. Eu não sei de nada.
Abana a cabeça. Não está a acreditar.
– Como é que vai para casa hoje?
– Vou de comboio ou de autocarro. Tudo depende das horas.
– Quer levar já hoje?
– Ele quer. Ele quer – intervém Pilar.
O director da Fundação, Sérgio Machado Letria, entra no escritório com dois sacos de pano, cheios de livros. Não vão aguentar o peso. Pilar sugere que se coloquem os livros na mala com rodas que comprou numa viagem à Colômbia e vai buscá-la. Ajoelha-se no chão e põe a obra completa de Saramago dentro da mala. Simão não pára de perguntar como pode devolvê-la. “A mala vale menos do que um livro destes”, diz-lhe Pilar.
Pilar sugere que Simão partilhe os livros. Que crie um grupo de leitura, que dê a conhecer a obra de José Saramago. “São sementes”, diz-lhe.
Na história em que agradecia às professoras, Simão escreveu: “A vida tem coisas fantásticas, ora estamos de bem com ela, ora estamos enterrados na lama até às pontas dos cabelos, mas temos ainda uma réstia de fôlego, estamos vivos. É nesse momento que acontecem coisas extraordinárias. Surge alguém, este alguém por vezes é plural, e em vez de dar a mão, estende o braço e simplesmente entrega um livro e diz: “Lê, quando acabares de ler, devolve.” Neste simples gesto, vamos saindo dessa lama suja de agonia, arrependimento e solidão.”
Agora é a vez de Simão.
Pouco tempo depois de sair da prisão, Simão conheceu uma mulher. “Não é amor”, garante, “É uma amizade pura.” Basta uma referência “à amiga” para os seus olhos brilharem. Ao falar dela, torna-se misterioso. Como se a relação entre os dois tivesse poderes mágicos. Não sabe explicar por que razão aconteceu o que aconteceu quando a encontrou pela primeira vez. Simão olhou para esta mulher e viu-lhe – jura – a alma. “O tal plim.” Passou algum tempo antes que Simão se lembrasse que já conhecia aquela sensação. “Foi exactamente como a Blimunda” deMemorial do Convento. “É tudo influências do livNão sei. Eu olhei, vi e ainda vi mais. Reparei.”