Your browser is out-of-date!

Update your browser to view this website correctly. Update my browser now

×

Reporter. Writer. Radio and multimedia producer  | Currently in Lisbon, Portugal  | Updating...


Photograph: Helena Colaço Salazar

A nossa terra não é a nossa terra

Com as mãos, Ana abre um buraco na farinha. Num movimento brusco, atira o sal. Coloca o fermento e verte água de uma malga. Os braços enterram-se quase até aos cotovelos numa mistura branca, mole e pesada, que parece ter vida própria. Com o indicador direito, Ana desenha três cruzes na massa. E reza: “Nosso Senhor me acrescente este pão para chegar para toda a gente”. Uma hora para fintar. 45 minutos no fogo.

“Pão, com farinha, água e fogo te levantas”. Ana Moreira, 28 anos, sabe de cor o verso de Pablo Neruda. Vê repetir-se o processo todas as sextas, sábados e domingos. Há cerca de um ano deixou Lisboa, cidade onde nasceu e veio viver para Penha Garcia, onde reabriu um dos fornos da aldeia.

A padeirinha, como é carinhosamente tratada por alguns dos habitantes de Penha Garcia, fez a licenciatura e o mestrado em Escultura na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa. Até ao ano passado, a história de Ana não era diferente da de muitos jovens portugueses com formação superior: trabalhou temporariamente a recibos verdes, distribuiu panfletos publicitários, fez outro curso (de esteticista) para ter mais alternativas, recebeu o ordenado mínimo num supermercado.

De avental axadrezado e com um lenço preto a cobrir-lhe os cabelos, a indumentária assenta-lhe bem, como se tivesse amassado o pão a vida inteira. Os movimentos dos braços são firmes e eficazes. Aprendeu depressa. “Não é muito diferente de moldar o barro”, explica a jovem escultora.

Os avós de Ana eram de Penha Garcia. Desde pequena que a mãe de Ana, Margarida Moreira, passava as férias de Natal e de Verão na aldeia. Lembra-se de ir à horta, de ordenhar as cabras e de ver matar o porco. Quando regressava a Lisboa, despedia-se de Penha Garcia comovida.

No ano passado, Margarida teve um problema de saúde e foi obrigada a fazer uma pausa no trabalho como assistente dentária. O processo de divórcio que se arrastava há alguns anos chegou ao fim e Margarida sentiu que “precisava de paz”. Pela mesma altura, Ana acabava um estágio profissional no concelho de Idanha-a-Nova e a ideia de regressar a Lisboa não lhe agradava. Numa noite, na casa onde viviam, em Alcântara, decidiram que precisavam de mudar de vida.

“O que vamos fazer?”

“Porque não pão?”

***

Há 20 anos, o forno comunitário servia toda a freguesia. Era gerido por um casal forneiro: o homem trazia a lenha e a mulher tomava conta do forno. As mulheres da aldeia amassavam em casa e traziam a massa para ser cozida aqui. Depois, como forma de pagamento, ofereciam ao forneiro um pão – a “poia”.

Ana e Margarida passam os seus dias aqui, num pequeno rectângulo de nove metros quadrados, entre quatro paredes de xisto. Quando não estão a fazer pão ou bolos, vendem os seus produtos aos turistas. O forno está, por isso, decorado para funcionar como uma loja provisória de produtos artesanais. Os pães de trigo e de centeio estão embalados e expostos em masseiras antigas. Num banco de madeira tosca, onde antes era colocado o porco para a matança, encontram-se pequenas cestas com biscoitos de limão, broas de mel e borrachões. Nas paredes foram penduradas peneiras antigas e do canto de uma velha cantareira pendem quatro farinheiras.

O forno reabriu em Janeiro de 2012. No início não foi fácil. Ana e Margarida gostavam de cozinhar, mas nunca foram para além do “bolo de iogurte aos domingos à tarde”. Em Penha Garcia, não houve muita vontade para as ajudar. A anterior padeira, a tia Adelaide, deu-lhes os contactos dos fornecedores. A tia Teresa mostrou a Ana os movimentos necessários para amassar correctamente. E pouco mais…

Alguns habitantes da aldeia desconfiavam delas e não acreditavam que ficassem por muito tempo: “as meninas de Lisboa estão habituadas à boa vida”, diziam com desdém. “As meninas de Lisboa não se vão aguentar muito tempo”, agouravam.

Quando o forno abriu, em Janeiro deste ano, algumas senhoras da aldeia passaram por lá. Foram dizer “às meninas de Lisboa” que não era assim que se fazia, que estava tudo mal.

A tia Alice foi um caso diferente. Ajudou-as desde o início. Deu-lhes as receitas das broas de mel, dos borrachões e dos bolos de centeio que durante toda a vida cozinhou para as bodas da aldeia.

“O que é que hoje estão a cozer?”, pergunta a tia Alice ao passar em frente do forno.

“Não estamos. Estamos a falar com uma jornalista que veio de Lisboa”, responde-lhe Ana em voz alta, porque a tia Alice continua na rua, desconfiada.

“Então? Vem buscar-vos para vos levar de volta?” – pergunta.

Vinha todos os dias ver como se saíam. Passou noites sem dormir, a pensar nelas as duas: e se não conseguissem fazer bem os pães e os bolos? E se estragaram as carreiras? “Trabalhar como padeira é desprestigiante para alguém com um curso superior”, pensava.” E a senhora Margarida? Passava oito horas quieta na secretária e agora tem muito trabalho”, preocupava-se.

Solteira e sem filhos, foi como se Ana e Margarida passassem a ser a sua família: “São um encosto que eu tenho”.

 As meninas de Lisboa não se vão aguentar muito tempo.

Este ano lectivo, Ana foi convidada para dar aulas uma vez por semana na Faculdade de Belas Artes. Ao mesmo tempo, começou a frequentar o doutoramento, o que implica passar dois ou três dias em Lisboa. Quando isto se soube, em Penha Garcia houve quem dissesse: “Ah! Agora vão-se embora de certeza”. É por isso que muitos preferem não lhes encomendar pão: não se dê o caso de Ana e Margarida regressarem à cidade e encerrarem o forno.

“Nem pensem. O forno não fecha portas”, diz Ana com rispidez. Olhos determinados. É a forma de falar de alguém que tem uma ligação inexplicável à terra. Olhamos para ela e não conseguimos imaginá-la de novo em Lisboa.

Nada parece indicar que regressem. Habituaram-se às rotinas da aldeia e do campo. Levantam-se às 3h30 ou às 4h e muitas vezes trabalham no forno até às 20h. O resto do tempo é passado a cuidar da horta, onde têm verduras e também frangos, galinhas e uma porca. É assim que poupam no supermercado. O pão e os doces que vendem dão para pagar a renda da casa e fazer face às despesas do mês.

A vida é mais dura, mas Margarida pensa que os sacrifícios dignificam. Uma das razões porque saiu de Lisboa foi porque “era tudo demasiado fácil”, explica.

Há um ano a viver aqui, concretizaram há pouco tempo um sonho antigo: compraram uma casa em Penha Garcia. Quando vinham de visita, alugavam um quarto e isto incomodava Ana – não ter um lugar que fosse dela num sítio que lhe dizia tanto.

***

Na estrada para Monsanto, a dez minutos de Penha Garcia, há uma vivenda amarela onde Sofia Pereira, 30 anos, montou uma empresa. À porta amontoam-se ramos de limoeiro acabados de cortar. Lá dentro, há um cheiro intenso a hortelã-pimenta e limão.

“Ela andava muito triste e aborrecida”, conta uma senhora idosa, de luvas amarelas calçadas, entretida a arrancar as folhas do limoeiro dos ramos e a pô-las de parte para juntar à nêveda, à lúcia-lima, à hortelã-pimenta e à erva-cidreira com que faz o chá.

Chama-se Maria José, mas é conhecida como a avó Mia. Quando Sofia, a quem falta um ano para terminar a licenciatura em Arquitectura, se desencantou com o curso e se convenceu que era provável não ter um lugar na área de formação que tinha escolhido, foi a avó Mia que lhe deu a ideia e os ensinamentos que permitiram a Sofia criar o próprio emprego.

Ocupada com as maquetes e os trabalhos para a faculdade, Sofia via os colegas a trabalhar como caixas de supermercado ou a deixarem o país. Não queria nenhum desses futuros. Em casa, a avó Mia dizia com frequência: “se eu fosse nova, abria uma empresa de compotas”.

Foi o que Sofia fez.

Tal como Ana, Sofia nasceu em Lisboa, mas nas férias ia para Eugénia, uma pequena localidade perto de Monsanto. Passava os dias a desenhar as típicas casas de pedra da vila e a fazer as compotas com a avó.

Sofia pegou nas receitas das compotas, dos biscoitos e na mistura de ervas para o chá, aproveitou a habilidade manual que desenvolveu durante as directas a trabalhar para o curso e criou, em Fevereiro deste ano, a empresa “Sabores de Monsanto”.

***

Sofia acha que este é um lugar mágico. A terra é escura e a erva está húmida. A escassa luz, filtrada pelas nuvens, incide sobre os muros de granito e ganha um tom cinza. Parece estar mais frio aqui do que em qualquer outro lugar em Monsanto.

Os terrenos férteis que constituem a horta do Louredo pertenciam aos avós de Sofia, mas agora é ela a responsável. No espaço de um hectare distribuem-se sobreiros, oliveiras e as árvores de fruto de onde Sofia colhe as laranjas, os figos e as maçãs que usa para as suas compotas.

Aponta para um espaço vazio entre os sobreiros, onde em breve ficarão as amendoeiras e as nogueiras e diz, com a preocupação de quem pensa em todos os pormenores: “os frutos secos que utilizo são comprados. Quero usar nozes e amêndoas daqui”.

Sofia gere todas as etapas do processo. Para espanto de alguns, foi ela que plantou muitas das árvores que aqui estão.“Sempre que me viam com uma enxada na mão os vizinhos desatavam às gargalhadas”, diz. Os figos usados para o doce foram colhidos por ela que, acabada de chegar de Lisboa, veio directa ao Louredo e apanhou a fruta. Em Janeiro há-de colher as laranjas com que fará a compota e que utilizará nos biscoitos.

É nesta horta que Sofia quer construir a sua casa. Por agora, vive em Lisboa porque o namorado é funcionário público e ainda não conseguiu colocação aqui perto. Sofia diz que o namorado não tem terra e por isso quer dar-lhe a dela.

Ao contrário da avó Mia, que deixou a vila e foi viver para Lisboa para que as filhas pudessem estudar, Sofia planeia sair de Lisboa e vir criar os filhos aqui.

Quem não é de Monsanto é conhecido, por estas zonas, como os “diabos de fora”. Familiarizada com esta terra e com estas gentes desde pequena, Sofia não é um “diabo de fora”. Mas mesmo assim, quando apresentou os produtos na feira do Castelo, em Maio deste ano, houve quem se recusasse a provar as suas compotas. Em Monsanto, as famílias têm o costume de fazer os próprios doces, por isso estranharam quando uma lisboeta começou a vender estes produtos na vila.

Na verdade, Sofia é cada vez menos “de fora”. É aqui que se sente em casa e, aos poucos, vai-se desligando da vida na cidade. Sabe tudo o que se passa por esta zona – desde as actividades culturais à abertura de um novo negócio: “estou em Lisboa, mas a minha cabeça está sempre aqui”.

Duas vezes por mês percorre 300 km de Lisboa até Monsanto, onde, com a ajuda da avó, faz as compotas e os biscoitos. Juntas apanham as ervas para o chá, a que Sofia deu o nome “chá da avó Mia”.

Em Lisboa, os familiares e os amigos perguntam-lhe se não se importa de gastar tanto dinheiro com as deslocações. “Prefiro gastar dinheiro em combustível para vir a Monsanto do que em roupas ou em idas ao cinema”, responde-lhes.

E quando tem de voltar, é difícil: “sempre que regresso a Lisboa, fico de neura nos primeiros três ou quatro dias.

 ***

A sul do concelho de Idanha-a-Nova, a paisagem serrana e rochosa de Penha Garcia e Monsanto, a norte, dá lugar a uma zona mais plana. Chegámos ao Ladoeiro, na zona do regadio da barragem de Idanha, uma área fértil, em tempos conhecida como o Ribatejo da Beira Baixa.

Quando há quatro anos decidiu comprar um terreno agrícola nesta região, Ricardo Araújo, 34 anos, quis um local isolado, longe da aldeia e longe da cidade.

“Desenvolvi esta personalidade solitária porque passava as férias em quintas de família. Não ia para a praia. Quando é assim, é difícil uma pessoa habituar-se à confusão”.

Isolado da confusão, Ricardo está mesmo no centro. Olha à sua volta e aponta na paisagem: ali é Castelo Branco, ali Monsanto, Idanha-a-Nova, a Serra da Gardunha, a Serra da Estrela e Espanha.

Ricardo nasceu em Lisboa e, ao contrário de Ana e Sofia, não tinha qualquer ligação a esta zona. Fez o curso técnico-profissional de informática e especializações em design e web design. Trabalhou quatro anos na Vodafone e depois montou uma creche em Odivelas, porque a mulher, Isménia Araújo, é apaixonada por crianças.

Numas férias, passaram por aqui e encantaram-se. Ricardo disse a Isménia: “vou viver aqui”. Agora, diz-nos a nós: “cuidado com o que desejas”.

Começou por comprar um terreno de 14 hectares e por vir todos os fins-de-semana. Sentia-se melhor aqui do que em Lisboa e pensava: “se gosto de estar aqui, porque hei-de estar lá?”

Ele e Isménia venderam a creche, pegaram na filha Eva, na altura com dois anos de idade, e mudaram-se para o Ladoeiro.

A voz calma e pausada de Ricardo muda de tom: “há um ano que não vou a Lisboa”, sorri orgulhosamente, como se se tratasse de um importante marco pessoal. E continua: “não sinto falta nenhuma!”.

Enquanto Isménia se ocupa com as aulas de mestrado em Educação Infantil e 1º ciclo, na Escola Superior de Educação, em Castelo Branco, Ricardo trata dos brócolos, das batatas, das couves e das cebolas – tudo produtos biológicos que vende a clientes particulares ou nas lojas que os pais têm em Lisboa. Alguns dos vegetais são postos de lado, para ajudar na economia familiar.

Não têm tanto rendimento como quando viviam em Odivelas e geriam a creche. Têm mais tempo. E para Ricardo, o tempo é a coisa mais importante.

Ricardo garante que não sente falta de nada aqui: “somos seres de experiências e eu já tive as minhas até aos 30 anos”. Por aqui, as experiências são outras, mais adequadas à sua personalidade introspectiva e solitária. A quinta é limitada por um pequeno ribeiro, onde a água não pára de correr. Este é um dos locais preferidos de Ricardo. No Verão, senta-se aqui horas a fio, a ler.

Uma conversa sobre o estado da agricultura em Portugal deixa Ricardo exaltado. Sem que nos apercebamos, estamos a falar de socialismo e liberalismo, de igualdade e liberdade: “Por que é que temos de ser todos doutores? Isso são ideias do socialismo.” Não temos de fazer todos a mesma coisa. “O que importa é sermos livres.” Ricardo discorre, entusiasmado, numa associação livre de ideias, como se estivesse a deitar tudo cá para fora: “Em Portugal falamos de agricultura e as pessoas imaginam um velhinho miserável agarrado à enxada. Por que é que há-de ser assim? Em Inglaterra, a agricultura é uma ocupação nobre.” Depois pára. “É o que dá. Venho para aqui e não paro de ler livros.”

 

10' 43''