Há uma pedra no meio do caminho, escondida entre oliveiras abandonadas e flores que crescem em todas as direções. Não foi esculpida por um escultor, não é um monumento. É um pedregulho. Mas não é uma pedra qualquer. Mesmo que não seja fácil ler, por debaixo dos líquenes, as letras brancas nela inscritas.
“Enquanto formos Governo, ninguém vos tirará as terras”. Esta é a frase quase apagada, mas que Francisco Farinho, 69 anos, jura não deixar esquecer. “Já tentaram dar cabo das letras com um ferro e um martelo, mas nós avivamos aquilo com uma lata de tinta”, diz o agricultor, rendeiro na Herdade dos Machados, uma propriedade agrícola a poucos quilómetros de Moura que em abril de 1975 foi nacionalizada.
Foi com esta pedra que em 1980 o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro tentou dar um exemplo. A reforma agrária do seu Governo haveria de ser “diferente da dos comunistas” e os trabalhadores da Herdade dos Machados seriam compensados pelos cinco anos em que a propriedade esteve nas mãos do Estado. Para isso, foram divididos cerca de 3000 hectares em 338 lotes de terreno, entregues a 94 funcionários que passaram a pagar ao Estado uma renda anual para poderem explorar as terras em seu proveito. Em vez das parcelas de terreno, os trabalhadores podiam optar por receber uma indemnização.
Os proprietários da Herdade dos Machados, que até 1975 detinham mais de 6100 hectares de terreno, receberam, em 1980, 490 hectares.
A Reforma Agrária de Sá Carneiro criou uma manta de retalhos na Herdade dos Machados e deu origem a uma luta pela terra que dura há mais de 30 anos. Nesta exploração agrícola, a ferida aberta depois do 25 de abril ainda não cicatrizou. De um lado estão os proprietários da Herdade dos Machados, que tentam chegar a acordos com os rendeiros para recuperarem os 6000 hectares. Do outro, estão os agricultores, que temem ser expulsos das terras onde trabalham. Todos acusam o Estado de, até hoje, não ter sido capaz de resolver a situação, pagando indemnizações a ambas as partes. O mais recente episódio dessas tensões são as cartas que o Ministério da Agricultura está a enviar aos rendeiros reformados para que estes devolvem as suas terras.
“Ele é mais ruim que o Salazar”, diz Francisco Farinho, referindo-se a Sá Carneiro no presente, como se o antigo primeiro-ministro continuasse a atormentá-lo. A pedra que o líder carismático dos social-democratas deixou em Moura é, ao mesmo tempo, uma garantia e uma maldição.
Francisco Farinho nasceu em Pias, a poucos quilómetros de Moura e perto de Baleizão, a terra que viu morrer Catarina Eufémia. Cresceu a ouvir falar de um Alentejo esquecido e subjugado e da prima, presa pela PIDE. Essas histórias deixaram uma marca. Da carteira, tira três cartões de militante no Partido Comunista Português. “Foram os únicos que nunca me enganaram”.
Escolhido como representante dos rendeiros do Estado, agarra-se a um pedregulho e à memória de um governante pelo qual não nutre grande simpatia, para lutar por aquilo que lhe foi prometido.
“O Estado é que fez isto. Nós trabalhávamos lá”
Vastas planícies douradas e montes discretos. É assim ao longo de 6000 hectares, entre Moura e Sobral d’Adiça. Num dos pontos mais altos da Herdade dos Machados, somos confrontados, como que por acidente, com a quietude imperturbável desta que, durante décadas, foi uma das mais importantes explorações agrícolas em Portugal e onde chegou a estar plantado o maior olival da Península Ibérica. Lá em baixo, o cenário é diferente.
Francisco Farinho mostra-nos os meloeiros em flor que se estendem em fila num retângulo limitado. De imediato, os olhos encontram outra paisagem. O terreno de pastagem, ao fundo, já não lhe pertence. “Estou aqui eu tipo papagaio no meio dos espanhóis”, diz, fazendo referência ao grupo Laboreia, que em 2011 comprou parte da Herdade dos Machados.
Ele (Sá Carneiro) é mais ruim que o Salazar.
Perto do local onde está situada a principal casa da Herdade, isolada por arame farpado, encontra-se, inacessível, a aldeia onde, antes do 25 de abril, viviam os trabalhadores. Ao longe é possível perceber que os telhados de algumas casas estão partidos. O local, a que Francisco Farinho se refere como o ‘Bairro da Queijarinha’, tinha 12 habitações e uma escola e está abandonado. “Tudo partido. Veja lá se valeu a pena sair…
Começou a trabalhar na Herdade dos Machados quando tinha 13 anos. Os avós e os pais trabalhavam e viviam aqui, numa dessas casas. O pai nunca soube ler nem escrever, mas ele frequentou a escola dentro da Herdade, ainda que não pudesse descurar a ajuda à família. A educação, diz, foi “tirada atrás dos porcos”.
O agricultor viveu aqui até 1975. Depois de a propriedade ter sido nacionalizada, perdeu o emprego. E está determinado a não perder a terra. “Não temos culpa daquilo que aconteceu. O Estado é que fez isto. Nós trabalhávamos lá”.
“Nessa altura pintávamos até as costas uns dos outros”
Abril de 1975. No Alentejo dos grandes latifúndios, os sindicatos agrícolas formados desde o ano anterior, exigiam o salário mínimo, o pleno emprego e o direito a férias. Comissões de patrões e de trabalhadores inspecionavam propriedades para determinar se podiam contratar mais mão-de-obra. A Herdade dos Machados, onde trabalhavam 150 pessoas, recebeu centenas de pedidos. Foi obrigada a empregar mais 100 trabalhadores.
Nos murais do país e nas bocas das pessoas estavam as palavras de ordem: “A terra a quem a trabalha”. Muitas explorações foram ocupadas. A 19 de abril de 1975 foi a vez da Herdade dos Machados, nacionalizada pelo Estado português durante o VI Governo Provisório. Os escritórios de Lisboa da Casa Agrícola Santos Jorge, empresa que detém a Herdade, foram ocupados.
Jorge Tavares da Costa, 60 anos, atual diretor-geral da Casa Agrícola, tinha 21 anos quando viu a avó, Ermelinda Martinez, ser expulsa das terras que lhe pertenciam e diz que “não esquece”. “Passou-se um mau bocado”, diz, ao lembrar que a família ficou impedida de aceder às contas bancárias e às viaturas da empresa, ao mesmo tempo que era chamada de “fascista”, e que a avó recebeu telefonemas com ameaças de morte.
Não temos culpa daquilo que aconteceu. O Estado é que fez isto. Nós trabalhávamos lá.
Em junho, o pai de Jorge Tavares da Costa morreu. A chave do jazigo onde deveria ser enterrado estava guardada no escritório da Herdade e “foi difícil obtê-la”, diz o empresário agricultor. Nem mesmo a casa de férias da família, na praia das Maçãs, escapou às intenções de ocupação. “Queriam fazer lá uma colónia de férias para os filhos dos trabalhadores”.
No lado oposto, na Comissão de Trabalhadores, estava Francisco Farinho. Fez barricadas, colou cartazes, pintou murais. “Nessa altura pintávamos até as costas uns dos outros”, diz, assegurando: “Não estávamos a fazer mal a ninguém. Estávamos a reivindicar”.
“Apanhem o posto de trabalho”
Em 1977, foi aprovada a Lei Barreto, que limitou a Reforma Agrária e previa o fim das expropriações, bem como a devolução das terras. Dois anos depois, o ministro da Agricultura Vaz de Portugal pôs fim à intervenção do Estado na gestão da Casa Agrícola Santos Jorge e entregou a empresa aos proprietários. Nessa altura, apenas os escritórios de Lisboa foram desocupados. Mas em 1980, a situação complicou-se com o projeto de Sá Carneiro.
Quando os trabalhadores da Herdade dos Machados tiveram de escolher entre uma parcela de terra ou uma indemnização, muitos foram aconselhados a optar pela terra. “Apanhem o posto de trabalho”, lembra-se Francisco Farinho de ouvir dizer. Aqueles que quiseram a terra tiveram direito a cerca de 30 hectares. Foi o caso da mulher e dos irmãos de Francisco, também trabalhadores na Herdade. O agricultor fez as contas e percebeu que a família já tinha à sua disposição quase 100 hectares, terreno suficiente para os quatro. Então, aceitou a indemnização – “cerca de 90 contos” – e criou uma sociedade agrícola com as terras da mulher e dos irmãos. Aí criam borregos e cultivam oliveiras e meloeiros, que em parte vendem, ficando o resto para a subsistência. “É para a gente comer, não para enriquecer”, diz.
Há quatro anos que Francisco Farinho recebe 274 euros de reforma. Dentro de um ano, a mulher poderá reformar-se, passando a receber 300 euros. Todos os meses, conseguem juntar, “entre subsídios e outras coisas”, quase 1000 euros. Por ano, o casal paga ao Estado uma renda de 1200 euros. Devido ao baixo valor das reformas, Francisco Farinho diz que não pode deixar de trabalhar. “Se desistirmos das terras passamos a receber 574 euros. Se eu tiver mais oito anos de vida, morro à fome antes do tempo.”
Quando os rendeiros morrem, as terras ficam vagas e os herdeiros têm 90 dias para as reivindicar. Os agricultores não podem passar as propriedades aos filhos em vida. Este é um dos principais problemas, segundo os rendeiros, porque muitas vezes isso impede que os filhos tenham acesso aos fundos de apoio a jovens agricultores.
“Eles pensavam que chegavam ali e eram índios”
A lei da Reforma Agrária depois do 25 de abril reconhecia o direito dos proprietários expropriados a uma reserva nas suas propriedades que não podia exceder os 70 mil pontos. A atribuição dessa pontuação era feita através da conversão dos valores dos vários tipos de hectares. Em 1980, depois de Sá Carneiro ter repartido as terras pelos trabalhadores, foi concedida uma reserva de 490 hectares aos proprietários da Herdade dos Machados.
Cinco anos depois da nacionalização da exploração, a família voltou a entrar na Herdade. Jorge Tavares da Costa diz que a casa estava pintada com frases como ‘Fora os fascistas’ e que durante a primeira noite houve alguma agitação, com “ativistas a fazer barulho”. O interior do edifício, no entanto, estava “intacto”, o que, segundo o diretor da Casa Agrícola, se deveu à presença de uma funcionária nomeada pelo Estado para guardar as posses da família.
No regresso, a família não estava sozinha. “Vínhamos com receio. Não sabíamos o que íamos encontrar”, diz Jorge Tavares da Costa para justificar a escolta por antigos comandos a quem a família pediu proteção.
Francisco Farinho critica a forma como os proprietários regressaram à Herdade. “Eles pensavam que chegavam ali e eram índios. Entraram aqui com seguranças e tudo. Puseram a malta a sair.” O representante dos rendeiros pensa que isso “foi uma asneira” e que se tivesse existido diálogo com os trabalhadores “até podia ter nascido uma cooperativa”.
Com o tempo, os ânimos acalmaram. Mas Jorge Tavares da Costa lembra-se de um último episódio mais conturbado. Na noite em que Sá Carneiro morreu, o diretor da Casa Agrícola garante ter ouvido festejar com foguetes. Receosa, a família pediu-lhe que não dormisse na propriedade e Jorge Tavares da Costa acabou por ir para casa de um amigo.
Francisco Patrício, 75 anos, é rendeiro reformado na Herdade, onde começou a trabalhar em 1979, contratado pelo Estado, que precisava de um apicultor. Estava há cerca de um ano na propriedade quando recebeu uma parcela de terra, sendo que a mulher, Catarina Pires, teve direito a outra. Na pequena casa que usa para extrair o mel das colmeias, guarda uma fotografia onde aparece, com outros rendeiros, junto à famosa pedra. Não houve comemorações no dia da morte do antigo primeiro-ministro, diz. “Desde que o Sá Carneiro foi para outro mundo… Quando ele morreu sentimo-nos desamparados”.
“Chamamos a isto acordos mas estamos a comprar o que nos foi roubado”
O contorno da Herdade dos Machados assemelha-se ligeiramente ao do continente africano. Há cerca de 40 anos que Jorge Tavares da Costa tenta pintar de azul toda a área do mapa. Apesar de o proprietário já ter conseguido reunir cerca de 4000 hectares, a exploração continua muito dividida, com as terras dos rendeiros, marcadas a branco, entaladas entre aquelas que pertencem à Casa Agrícola.
“Isto no Alentejo é do mais anti-económico possível”, diz, acrescentando que a divisão da propriedade dificulta também o trabalho dos rendeiros, cujas terras recebidas não são contíguas, precisando, por isso, de se deslocar vários quilómetros.
Desde que o Sá Carneiro foi para outro mundo… Quando ele morreu sentimo-nos desamparados.
“Foi a vida inteira para recuperar isto”. O diretor da Casa Agrícola Santos Jorge gostava de conseguir recuperar a totalidade da propriedade que pertenceu à família, mas diz não estar interessado “naquela ideia antiga do latifúndio”. Por isso, em 2011, a empresa fez uma parceria com uma empresa espanhola, Laboreia. Segundo o empresário, se toda a propriedade fosse recuperada, 3300 hectares seriam da Casa Agrícola, enquanto que 2600 caberiam à Laboreia.
Com a entrada dos espanhóis, tornou-se mais fácil recuperar terra. “Precisávamos de financiamento para concluir os acordos com os rendeiros”, diz Jorge Tavares da Costa. Se até 2011 conseguiu passar de 490 para 1800 hectares, a partir desse ano, a Casa Agrícola aproximou-se dos 4000 hectares.
Jorge Tavares da Costa explica que nas negociações com os rendeiros tenta garantir que estes ficam “com qualquer coisa”, apesar de não querer revelar valores. “Chamamos a isto acordos mas estamos a comprar o que nos foi roubado”, diz, com alguma revolta. Segundo o diretor da Casa Agrícola, se quiserem, os rendeiros podem trabalhar para a empresa. Até porque, diz, não foram eles “os culpados desta situação”, assegurando que não há nenhuma animosidade entre ele e os agricultores. “Se houvesse eu estava tramado e não podia viver aqui”.
Eduardo Pelica, 54 anos, chegou a acordo com a Casa Agrícola Santos Jorge há cerca de dois. Quando António Francisco Pelica morreu, o filho, Eduardo, ficou com a terra que lhe tinha sido entregue em 1980. Mas para Eduardo Pelica, queijeiro há mais de 30 anos, a agricultura esteve sempre em segundo lugar. Explorou os hectares que tinham sido do pai durante dois anos, até ter sido abordado por Jorge Tavares da Costa. “Se calhar ele sabia que eu não tinha muito vagar para explorar aquilo”, diz, não querendo revelar o valor da proposta feita pelo diretor-geral da Casa Agrícola e com a qual acabou por concordar.
O “agricultor queijeiro”, como ele próprio diz, admite que teve pena de dar as terras, mas percebeu que não poderia continuar a trabalhá-las. “Ou temos as coisas e tratamos delas ou deixamo-las. Se não começamos a ouvir críticas dos colegas: ‘Tem aquilo abandonado…’”
Jorge Tavares da Costa diz que se as parcelas coloridas a cinzento no mapa – que correspondem às terras em que os rendeiros já renunciaram aos contratos de arrendamento, faltando a oficialização pelo Ministério da Agricultura e do Mar – “não voltarem atrás”, ficam por recuperar 1800 ou 1900 hectares. Entre esses rendeiros, há alguns “casos menos pacíficos” que, “a seu tempo”, serão contactados pela Casa Agrícola, garante.
O empresário acredita que o atual Governo “quer resolver a situação da Herdade dos Machados”. Até lá, diz que está a contabilizar todos os prejuízos para que um dia a empresa possa ser compensada. “Quanto mais tarde se resolver, maior prejuízo tem o Estado”.
Ao Observador, o antigo ministro da Agricultura do Governo de António Guterres, Luís Capoulas Santos, disse que quis “encerrar o processo da Reforma Agrária, pagando indemnizações aos proprietários que foram expropriados e nunca tinham sido compensados”. O ministério da Agricultura terá notificado a Casa Agrícola Santos Jorge, que, segundo Capoulas Santos, “fugiu sempre” de fazer uma contraproposta. “Creio que a Casa Agrícola resistiu o mais que pôde porque se aceitasse a indemnização perderia a terra definitivamente”.
Ao Observador, Jorge Tavares da Costa preferiu não comentar esta informação.
O antigo ministro da Agricultura diz que foi o responsável pela regularização da situação dos rendeiros, celebrando contratos de arrendamento no final dos anos 90, depois de uma década em que os Governos de direita “fizeram alterações à lei da Reforma Agrária no sentido de beneficiar mais e mais os proprietários”.
“Nos primeiros tempos assustávamo-nos com as cartas. Agora já não”
Os rendeiros queixam-se do mesmo. Ao longo dos anos, foram recebendo cartas do Ministério da Agricultura para abandonarem as terras. Aconteceu em 2003, quando o ministro da Agricultura de Durão Barroso, Sevinate Pinto, publicou um despacho em que defendia a “denúncia” dos contratos de arrendamento”. Nessa altura, os rendeiros recorreram para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAF de Beja), que lhes deu razão.
Repetiu-se em 2011, quando o atual secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural solicitou um parecer à Procuradoria-Geral da República sobre o despacho de Sevinate Pinto, relativamente ao fim dos contratos de arrendamento. A PGR determinou que o Estado estava proibido de agir contra a sentença do TAF de Beja.
O Governo atual teoricamente tem a nossa ideologia, mas isto não se resolve. Não há coragem para sair desta situação porque mexe com a parte social e as pessoas tremem.
Em junho deste ano, 14 dos 17 rendeiros da Herdade dos Machados que se encontram reformados receberam uma carta onde se lê que o contrato de arrendamento que têm com o Estado português cessa no dia 31 de outubro, uma vez que os reformados “não podem ser beneficiários de entrega para exploração”.
Estas cartas estão a deixar os rendeiros da Herdade dos Machados nervosos e revoltados. O apicultor Francisco Patrício e a mulher, Catarina Pires, receberam as cartas e escreveram outra de volta. Já o tinham feito em 2003. “Qualquer pessoa que leia aquela carta gosta porque não ofendemos as pessoas”, diz o rendeiro reformado, orgulhoso. Na altura, Sevinate Pinto quis conhecer o casal e convidou-os a visitarem o seu gabinete em Lisboa. Nessa ocasião, o antigo ministro da Agricultura terá dito “que assinava os papéis sem ler com muita atenção”, mas assegurou-lhes que podiam “ficar descansados”, porque “não iriam deixar as terras”.
Quase dez anos depois, a situação repete-se. Francisco Patrício diz-se habituado. “Nos primeiros tempos assustávamo-nos com as cartas. Agora já não”, diz o apicultor. Mas irrita-se. “Fizemos despesas. O que fazemos agora?”. Ele conhece as regras do jogo. “Há um ditado que diz: ‘a corda parte-se do lado mais fraco’. E nós somos o lado mais fraco”.
Francisco Farinho, que já contactou um advogado por causa destas cartas, tenta tranquilizar o amigo. “Eles mandam a carta para assustar os velhos. Se calhar o secretário de Estado estava com um copo a mais e fez aquele trabalho”. Depois, enche-se de revolta. “Aqueles que têm ali as vacas, o que lhes vão fazer? Levam-nas para o Parque Eduardo VII? Não foi isso que o Sá Carneiro disse. Eles que enchem a boca de Sá Carneiro deviam ter respeito por ele”.
Do lado dos proprietários, também há queixas. “O Governo atual teoricamente tem a nossa ideologia, mas isto não se resolve. Não há coragem para sair desta situação porque mexe com a parte social e as pessoas tremem”, diz Jorge Tavares da Costa. “Vamos continuando neste vale de Lágrimas”.
No dia em que Francisco Sá Carneiro foi a Moura, Francisco Farinho “tinha mais o que fazer” e ficou em casa. Ainda assim, sabe dizer que “foi tudo à Lagardère”. Para marcar a entrega das terras, Sá Carneiro deslocou-se à Herdade dos Machados com o ministro da Agricultura António Cardoso e Cunha. Mataram-se borregos e tiraram-se fotografias para a posteridade. “Foi maravilhoso o dia”, diz Francisco Patrício. “Dei os parabéns ao Sá Carneiro. Fiquei todo contente. Consegui apanhar uma terra”.
De Montemor, veio a pedra. Em setembro de 1980, talvez antecipando a confusão que se seguiria, Francisco Farinho não quis participar na cerimónia. “Uma pedra daquelas no meio da Reforma Agrária dos comunistas… Ai minha mãe, minha alma!”. Para o rendeiro, a pedra de Sá Carneiro foi como “uma lança em África”. Francisco Farinho tem uma relação ambígua com a pedra. Desmonta-lhe o simbolismo – “Ele [Sá Carneiro] quis mostrar que tinha razão”; goza com ela – “Veja aí esse Memorial do Convento”; faz troça do espalhafato – “Veio uma máquina, abriu um buraco e espetou lá a pedra”. Mas acaba rendido à sua perenidade. “Afinal de contas ainda ali está. Aquilo é testemunha. Ninguém a consegue arrancar”.