João Paulino Amaral, 59 anos, vive no ponto mais ocidental do continente europeu. Daqui, do Cabo da Roca, vê-se Mafra e a Ericeira. Se o dia estiver limpo, distinguem-se, no horizonte, as Berlengas. Nessas manhãs claras avistam-se navios carregados de cereais, automóveis e petróleo – motores do comércio livre, peças da dependência global. Ao longo dos anos foi aumentando o número de turistas que chegam todos os dias – muitos italianos e alemães, cada vez mais asiáticos.
Olhando daqui, do lugar onde o continente começa, ou do ponto onde acaba, o subchefe Amaral também vê que a Europa – o sonho de uma Europa unida – está muito longe: “Acho que Portugal ainda hoje vê a Europa bastante longe. Nesta altura, depois de tanto tempo na União Europeia, ainda estamos muito fora”.
Nascido no Faial, no arquipélago dos Açores, onde está o ponto mais ocidental de toda a Europa e não apenas do continente, João Amaral diz que foi Moçambique, onde passou toda a adolescência até aos 19 anos se juntar à Marinha, que deixou a marca mais forte na sua identidade. Quando voltou a Lourenço Marques, depois do 25 de abril de 1974, foi como militar. Esteve cinco meses e partiu antes da independência.
A Europa veio depois, no final dos anos 70. Conheceu parte do continente “de passagem”. Viagens de dois ou três dias que deixaram uma impressão de fechamento. Hoje, passados mais de 30 anos, diz que “já há mais abertura”, mas, ainda assim, “os países do sul são mais abertos do que os países do norte”.
Sente-se mais africano ou europeu? “Há sempre aquela saudade de África. Mas já estou em Portugal há muitos anos. Vou-me sentindo mais europeu”, diz. A identidade não é estanque. João Amaral acredita que é possível que os portugueses digam, um dia: “Não sou português. Sou europeu”. Ainda que leve tempo. “Estar aqui ou na Alemanha ou em qualquer sítio e sentir-se europeu. Vai demorar. Não é de um dia para o outro que as mentalidades mudam”.
João Amaral quis ir para a Polícia Marítima, mas na mesma altura abriu o curso para faroleiro e então agarrou a oportunidade. Nunca tinha pensado muito em faróis. Cresceu na única freguesia da ilha do Faial que não é banhada pelo mar – Flamengos. Passava as férias na casa de uma tia que vivia no litoral, numa encosta junto da qual existia um farol. João Amaral via passar o feixe luminoso e achava graça. Durante o curso, aprendeu português e matemática e tudo o que havia para aprender sobre o funcionamento de um farol: o que era uma lente, como funcionava, as partes técnicas e as eletrónicas.
Iniciou a carreira em 1983, no Cabo da Roca, para onde voltou, mais de 20 anos depois. Passou pelo farol de Santa Maria, no Algarve, pelo de Leça e esteve duas vezes no Cabo Carvoeiro. “Nos faróis é praticamente tudo igual”, diz, afastando a ideia de que a vida de um faroleiro implica riscos e aventuras e está envolta em mistério. João Amaral não se lembra de nenhum episódio que justifique o romantismo existente em torno dos faróis. Ainda olhou para o mar à procura das luzes que – ouviu dizer – os faroleiros do Cabo da Roca descobriam no mar. Só viu um “turbilhãozito”, que desapareceu rapidamente. “Um E.T. ou um ovnizito… Nunca vi, mas gostava de ter visto”.
Estar aqui ou na Alemanha ou em qualquer sítio e sentir-se europeu. Vai demorar. Não é de um dia para o outro que as mentalidades mudam
E também não há muitas histórias de solidão ou homens de semblante pesado, quase-heróis isolados e melancólicos. Neste farol vivem três faroleiros. João Amaral está sozinho, mas os outros dois estão acompanhados pelas mulheres e filhos. “É como uma família…”, diz o subchefe Amaral, “de vez em quando há atritos”. Carlos Pacheco, 56 anos, é o primeiro faroleiro do Cabo da Roca e ri-se sempre que lhe perguntam pelas histórias do farol. “Há muita imaginação. O homem das barbas…”, diz.
O dia a dia é trabalhoso e não há muito tempo para fantasias. João Amaral levanta-se às 6h ou 7h para colocar as cortinas que protegem o vidro da lanterna. Na hora de acender o farol, retira os panos. Por dia, sobe duas ou três vezes as escadas em caracol com degraus estreitos que se vão afunilando à medida que nos aproximamos do topo da torre. Durante o resto do tempo, há todo o trabalho de manutenção do edifício – pinturas, arranjos eléctricos e mecânicos e limpeza das superfícies. “Fazemos tudo e mais alguma coisa e às vezes até somos faroleiros”, diz Carlos Pacheco.
“Quando me reformar vou para ator”
Nem OVNIS nem grandes tempestades ou naufrágios. Os faroleiros do Cabo da Roca estão mais habituados aos atores e realizadores, às luzes e às câmaras de televisão e cinema. E aos takes que se repetem vezes sem conta. A cena em que Francisca Vieira da Silva trinca uma maçã vermelha envenenada, morrendo pouco tempo depois – interpretada pela atriz Sofia Ribeiro na telenovela da TVI “Doce Tentação”, levou uma tarde inteira a ser gravada, segundo João Amaral, que assistiu a tudo. “Ação!”, diz o faroleiro, simulando com as mãos o movimento da claquete, repetido várias vezes nesse dia. “Estava um frio terrível e ela, coitada, via-se aflita para fazer essa cena”.
Em 2012, João Amaral apareceu num vídeo de apoio à seleção nacional de futebol feito pela Marinha. O estranho plano de uma bola de futebol a rebolar pelas escadas em caracol acima é efeito de montagem, revela o faroleiro, explicando que a bola foi filmada a descer.
Noutra altura, na produção de um filme sobre a pesca do percebe, o realizador pediu-lhe que colocasse e tirasse as cortinas do vidro da lanterna. O subchefe Amaral não chegou a ver o filme e desconhece se a sua cena faz parte do produto final. Pela experiência que foi acumulando como espetador e figurante, sabe que às vezes “se grava durante uma hora para sair um minuto”.
Prestes a reformar-se, João Amaral pensa, por vezes, em mudar de carreira. “Acho que quando me reformar vou para ator”, diz, para depois pensar melhor sobre o assunto: “Mas também não é fácil… Para gravar dois minutos ficam aqui a tarde inteira. Uma vez filmaram-me e apareceu muito pouco tempo”.
Portugal ainda mais longe
A crise financeira deixou Portugal ainda mais longe da Europa, diz o faroleiro, para quem a adesão à moeda única foi o grande erro do país. “A maior asneira que Portugal fez foi ter entrado logo para o euro. Um país sem indústria, sem nada… com uma moeda forte… não podia ser”. João Amaral lembra-se da euforia em torno da nova moeda e de não ter embarcado nela. “Ainda nem havia o euro e toda a gente queria trocar o escudo. Na altura pensei: ‘Oxalá não se arrependam daqui a uns tempos’”. Ninguém pensou no aumento dos preços, diz. “Foi tudo para o dobro. Tudo subiu menos os vencimentos, que deviam ter subido para o dobro”. O faroleiro acha que “podíamos ter passado sem o euro”, mas pensa também que sair agora, no meio do turbilhão, “ia ser complicado”. “Levávamos 200 anos a pagar a dívida”.
Carlos Pacheco não quer falar de política nem de economia. “Não vou assim muito por esse campo”, diz. Prefere explicar as características técnicas que distinguem o farol do Cabo da Roca. Quatro flashes e um feixe luminoso que leva 17 segundos a completar a rotação. Até aos 48 quilómetros de distância, a luz confirma aos navegantes a localização. A Europa que começa ou o ponto onde ela acaba…
O primeiro faroleiro nasceu em Sagres e diz que vem “do fim do mundo. A estrada que nos leva até lá é a que nos faz sair”, diz Carlos Pacheco. Em tempos acreditou-se que o mundo acabava em Sagres. Mas isso foi antes de Portugal sair dali para o Atlântico, para África, para a América. E hoje? Portugal deve sair para onde? “Acho que Portugal, continuando europeu devia virar-se para África e para o Brasil. Países como Angola e Brasil estão a emergir… Portugal devia ser uma porta de entrada desses países na Europa”, diz João Amaral.
Timidamente, Carlos Pacheco vai arriscando um comentário. Que Europa é que se vê do ponto mais ocidental do continente? O primeiro faroleiro acha que “o sul está muito descompensado quando comparado com os países frios”. E aqui, no Cabo da Roca, “também faz muito frio”, mas “não há compensação nenhuma”. No seu discurso há uma certa nostalgia, um sentimento de fim de festa. “A União Europeia? Já que estamos temos de aceitar. Por um lado foi bom. Agora temos de aceitar a parte ruim”. A parte ruim significa que a Europa “vê Portugal como lixo”. Carlos Pacheco perde a timidez. “Somos os servidores. Damos comida e sol”.
Olhando para o lugar exato onde a terra acaba, a poucas dezenas de metros do espaço onde foi construído o farol, experimenta-se uma sensação melancólica de abismo. As palavras de Camões, escritas na pedra, ecoam a consciência do fim. “Onde a terra se acaba e o mar começa”. O declive é a pique, e o vento é tão forte que nos obriga a virar-lhe as costas. Mas lá em baixo, as ondas batem, suaves e delicadas, contra a rocha.
Acho que Portugal, continuando europeu devia virar-se para África e para o Brasil. Países como Angola e Brasil estão a emergir… Portugal devia ser uma porta de entrada desses países na Europa
O simbolismo do Cabo da Roca torna-o uma espécie de lugar de peregrinação para os turistas. Lukas Mayer, 16 anos, veio com a família e amigos da Alemanha. O que é a Europa para ele? “Não conseguimos identificar-nos com toda a Europa”, diz. A mãe, Sonya Mayer, 55 anos, traça uma linha divisória no continente. “Identificamo-nos mais com o estilo de vida do norte do que com o sul. Mas gostamos das férias no sul”. Não falamos da crise económica ou política, mas ela está subentendida. “Eles vão tentar que ela (a União Europeia) continue. Progredimos muito juntos e seria difícil que acabasse porque dependemos muito uns dos outros”, diz Sonya Mayer.
Dimitry Mazurshk, 29 anos, já visitou o ponto mais oriental do continente europeu, na Rússia, país onde nasceu. Agora, no ponto mais ocidental, fala como se estivesse desiludido com aquilo que considera a incapacidade da Europa de “tomar decisões por ela própria”, acabando por “ir sempre atrás dos Estados Unidos”, cujas políticas considera “erradas”. Dimitry Mazurshk acha que a Europa e a Rússia deviam estar unidas, sem ouvir os norte-americanos. E aponta o dedo aos europeus por não perceberem que “os eslavos querem viver todos juntos”.
Ubirajara Junior, 20 anos, natural do Brasil, pensa muito antes de responder qual é a Europa que ele vê daqui. “É a junção de países bem desenvolvidos”. “Alguns de vento em popa…” Hesita entre cada frase. “…Outros mais amarrados”. Não é fácil falar da Europa “como um todo”. Parece uma questão sensível. Difícil de perceber e de definir. Como se a luz da Europa fosse difícil de ver ao longe.