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Reporter. Writer. Radio and multimedia producer  | Currently in Lisbon, Portugal  | Updating...


Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Dançar para não parar de dançar

Os bailarinos sacodem o torpor e a timidez e avançam para as posições em frente ao espelho. Vão acordando os músculos ao ritmo de uma música que é composta por aberturas de telejornais em língua inglesa sobre a crise dos refugiados. Fletem os torsos demoradamente em direção ao chão de onde apanham páginas de jornais. A leitura das notícias acompanha o crescimento e a extensão dos corpos – os músculos ficam mais definidos, tornam-se tensos. Os corpos, em choque, atrapalham-se pelo espaço, fugindo sem rumo, obedecendo apenas à ansiedade. A fuga é suspensa momentaneamente, os corpos detêm-se em movimentos bruscos, a música para. E a coreografia explode em violência.

Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

As mulheres entram e saem do palco, transportam cadeiras, levantam-se das cadeiras, saltam das cadeiras, lançam gemidos guturais que são descargas elétricas de sofrimento. E precipitam-se umas contras as outras, contra as bordas do palco de ensaio, contra o chão – sempre como se estivessem prestes a libertar-se em direção ao abismo, mas travando a queda no último momento. A peça extingue-se como um fósforo e quando termina ficamos atordoados, incapazes de desviar o olhar, procurando com os ouvidos o retomar da música, um passo, uma hesitação qualquer que nos resgate da insatisfação. «Queriam mais?», pergunta Ricardo Runa, o coreógrafo e bailarino responsável por Looking for a Place to Live, que, de uma forma geral, diz, é um bailado sobre a crise dos refugiados. A pergunta do coreógrafo é uma espécie de inquérito com fins estatísticos, uma forma de testar uma hipótese. «As peças são sempre curtas porque quero que a audiência fique a querer mais e venha da próxima vez», diz. A estratégia é aparentemente ingénua, mas soa a epifania quando continuamos agitados com aquilo que acabámos de ver. «Muitas pessoas ficam surpreendidas com as nossas coreografias. Pensam que vão ver uma coisa amadora e saem surpresas.»

Que mais se poderia esperar de Kayzer Ballet, a primeira companhia de bailado jovem criada no meio de Portugal, mais concretamente na Covilhã, distrito de Castelo Branco, de onde os jovens fogem à procura de emprego? Mas o bailarino, coreógrafo e fundador da companhia – tudo isto com apenas 24 anos – fala como alguém que tem a certeza de que não nasceu para ser amador durante muito tempo. Estudou ballet clássico e contemporâneo na Escola de Dança do Conservatório Nacional, tendo passado pelos EUA, onde teve a oportunidade de dançar os papéis principais de Quebra Nozes, Romeu e Julieta e Cinderela, no Gwinnett Ballet Theatre, uma companhia de dança pré-profissional em Atlanta. Ficou um ano e diz que tinha um contrato à espera da sua assinatura, mas regressou a Portugal com outros planos. «Lá eu ia ser apenas um bailarino. Tenho veia de criador. Quero ser eu a criar os alicerces do meu futuro.»

Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Em 2014, Ricardo regressou à cidade de onde saiu para continuar a dançar e abriu a companhia de dança Kayzer Ballet. Neste momento, além dele, o grupo conta com outras quatro bailarinas – a russa Oxana Grenkova, a sueca Julia Bengtsson, a espanhola Maria Aparicio e a italiana Martina Di Riccio. Ao fim de dois anos, terá sido uma jogada arriscada? Talvez, responde. Mas estratégica. «Estar num sítio onde já existe tudo também é um risco», diz. Se há algo que não existe na Covilhã é tradição no ballet. Mas há muitas vantagens em regressar à terra onde se nasceu.

O jovem coreógrafo não ganha o suficiente com os espetáculos ou com as aulas de dança na sua companhia ou no Conservatório da Guarda, onde também ensina, e por isso continua a viver em casa dos pais. Estes, diz, apoiam-no incondicionalmente. Ao ponto de o pai, o estilista Paulo Runa, ter-se disponibilizado para ser figurinista da companhia. A Câmara Municipal da Covilhã cede-lhes o Teatro Municipal para os espetáculos mensais que, segundo o jovem, têm uma audiência média de 300 pessoas. No segundo andar do Club União, onde durante décadas se reuniam os industriais têxteis da cidade para jogar às cartas, um espaçoso apartamento foi transformado em estúdio de ballet e escola de dança. Ricardo não revela quanto paga de renda, mas diz que um espaço como este, em Lisboa, lhe custaria «1500 euros por mês». Mas todos estes apoios são «logísticos», sublinha o bailarino, lamentando a inexistência de apoios financeiros enquanto não consegue concorrer a financiamento estatal (para isso é necessário um mínimo de dois anos de atividade). «Gostávamos de ter um mecenas para patrocinar a temporada. Tudo aquilo que ganhamos num espetáculo investimos na produção do próximo. Eu pedia 15 mil euros por ano – já dava uma ajuda fantástica. Penso sempre: “Se com pouco consigo fazer, então se tivesse…”»

Que alicerces para o futuro encontra aqui, sem dinheiro, a viver em casa dos pais, passando os dias num espaço a que muitos à sua volta, talvez por não estarem habituados a viver perto de uma companhia de ballet, insistem em chamar de escola? Os objetivos podem parecer ambiciosos: «Quero que esta seja uma companhia jovem de referência internacional.» Mas o jovem não fala de cor quando diz que Portugal precisava de uma companhia em que bailarinos recém-formados pudessem lidar com aquela pescadinha de rabo na boca que é tão cara à geração mais jovem e precária – a aquisição de experiência como condição prévia para trabalhar. «É complicado mantermo-nos quando não estamos em nenhuma companhia. Temos de pagar para ter aulas e para manter a forma», diz. Os currículos que recebe de todo o mundo não o deixam mentir – os jovens candidatos às audições no Kayzer Ballet estão um pouco por toda a Europa, mas também na Austrália, no Japão, na Rússia e nos EUA. Alguns dos bailarinos que fundaram o Kayzer Ballet com Ricardo já deixaram entretanto a Covilhã para ingressar em companhias de dança na Alemanha, em Itália, no Reino Unido e no Japão. No dia 2 de abril, haverá novas audições porque o coreógrafo espera ter dez bailarinos na próxima temporada.

Mas há outros sinais de que as coisas correm bem ao Kayzer Ballet. A escola de dança tem 20 alunos com idades entre os 8 e os 50 anos. Os jovens têm o apoio de coreógrafos reconhecidos como José Luis Vieira, Didier Chazau e Tom Colin da Companhia Nacional de Bailado e de Ken Ossola, do Netherlands Dance Theatre – todos eles estiveram na Covilhã a coreografar com a companhia. Recentemente, a equipa passou às semifinais do programa da RTP Got Talent, onde decidiu participar para aumentar a visibilidade do grupo e assim conseguir abrir as portas de teatros de todo o país, tarefa que se tem revelado difícil. «80 por cento dos pedidos que fazemos não têm resposta. É uma falta de consideração pelos artistas», lamenta. Apesar de a companhia não conseguir atuar em Portugal, as portas lá de fora parecem abrir-se com mais facilidade. Ricardo e outras três bailarinas partem a 20 de março para os EUA, onde vão participar no Festival Friends and Famous Dances, em Atlanta.

Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Photograph: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Olhando para lá do sucesso exterior que a companhia vai, aos poucos, conseguindo alcançar, o que encontramos é uma família temporária, onde as relações são mais simbióticas do que competitivas, cada elemento do todo esperando a sua vez de voar. Oxana, Julia, Maria e Martina deixaram as academias onde se formaram há relativamente pouco tempo e concorreram ao Kayzer Ballet, onde encontraram um grupo onde podem dançar todos os dias e atuar todos os meses, sem terem de esperar que os bailarinos principais se lesionem, como é o caso de tantos jovens nas companhias mais conhecidas. Encontraram o Kayzer Ballet na internet ou através de amigos que estiveram na companhia antes delas, concorreram a audições, enviando os currículos e vídeos, e acabaram por ficar. As jovens bailarinas dizem estar «felizes» e «confortáveis» na Covilhã, no Kayzer Ballet, onde se sentem estimuladas.

«É muito interessante o que ele está a fazer aqui, tem muita coragem e foi uma ideia maravilhosa. Gosto da maioria das peças que ele faz e todas damos ideias e colaboramos na composição das coreografias», diz Maria Aparicio, a espanhola de 18 anos. «A primeira performance que fiz foi aquela de que gostei mais até agora porque senti que estava mesmo a dançar numa companhia», continua. As bailarinas confirmam as palavras do jovem coreógrafo quando diz que apesar de por vezes ter de «puxar por elas», os cinco são muito próximos. E elas são ainda mais próximas entre elas. Vivem as quatro na mesma casa, apoiam-se nas questões emocionais e vigiam a alimentação umas das outras. Ricardo gaba-se de forma infantil de ter um bom metabolismo e de poder comer tudo o que quer, ao contrário delas.

«Quando fomos ao Got Talent passaram o dia com uma maçã no estômago. Serviram-nos uma piza que elas não podem comer, coitadas», diz o jovem. Elas riem-se, entre a timidez e o gozo com as palavras algo desajeitadas do coreógrafo. Fora a questão financeira, há uma situação que parece estar a incomodar as bailarinas. Pela forma como retomam o assunto quando questionadas dá para perceber que o tema está sempre presente. «Namorados… Essa é a parte difícil», dizem a rir, aumentando o tom de voz, como se antes estivessem a cochichar sobre o assunto. «Às vezes acabam-se os temas de conversa entre nós as quatro», diz Martina Di Riccio, a italiana de 20 anos. «Mas nunca tentámos fazer novos amigos…», lamenta Maria. «Eu estou sempre a dizer-te isso», diz Martina.

Como as bailarinas têm ainda dificuldades com o português, não conseguem arranjar emprego na Covilhã, onde há quem estranhe que uma russa, uma espanhola, uma sueca e uma italiana sobrevivam da dança no interior do país. «Às vezes perguntam-nos se estamos a fazer isto por caridade», diz Martina. As jovens são inteiramente sustentadas pelos pais. Ricardo Runa lamenta não poder pagar-lhes um ordenado. Todo o lucro dos espetáculos é investido na produção do espetáculo seguinte ou vai para o pagamento da renda do estúdio. A escola de dança da academia não tem capacidade para todas terem uma posição de professora. Mas o jovem coreógrafo diz de imediato: «Ao menos não pagam para trabalhar.» E dá o exemplo de Julia Bengtsson, a sueca de 21 anos que frequentou uma companhia juvenil na Suíça que exigia 9000 euros de propinas anuais.

As bailarinas dizem não alimentar sonhos de fama mundial, contentando-se com uma versão do plano de Maria, que dança desde os 3: «Quero ser paga para dançar. Quero sobreviver a dançar. É muito difícil entrar numa companhia e isso assusta-me. Não o conseguir seria um fracasso. Os meus pais têm gasto tanto dinheiro nas minhas ideias loucas…» Já todas pensaram em desistir, conscientes de que não é fácil atingir o estatuto de bailarina profissional. Oxana Grenkova, russa de 21 anos, esteve prestes a fazê-lo, desencorajada por uma lesão grave e incapaz de evitar as comparações com a irmã, gémea, que se tornou bailarina principal da Companhia Nacional de Bailado. Foi essa irmã que lhe disse: «Não há razão para desistir daquilo que se fez toda a vida.» Oxana encontrou o seu lugar no Kayzer Ballet e diz que se sente bem aqui, repetindo como o único adágio que importa: «Dança, dança, dança.» E os sonhos vão-se realizando. Martina conseguiu um contrato no English National Ballet já depois de estar na Covilhã.

Mas talvez nenhuma delas fosse a lado nenhum se as condições no Kayzer Ballet fossem diferentes. Sentadas no chão, costas curvadas na direção do grupo, as quatro bailarinas formam uma roda de timidez e de intimidade que é difícil quebrar. Encaixam os braços nas cinturas umas das outras, encostam o rosto ao ombro mais próximo. Trocam risos envergonhados e confidências em voz baixa. É como se as quatro, na sua coordenação exemplar, na interdependência que a dança exige e que continua fora do palco, se tivessem transformado numa só. E quando se deslocam, mantêm-se próximas, como se um passo desalinhado as pusesse em risco. Todas com uma versão do sonho de Maria: «Se recebêssemos dinheiro ficaríamos sempre aqui. Estamos tão confortáveis. Somos uma família.»

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