No verão de 1944, o General Dietrich von Choltitz tornou-se o último governador militar de Paris. Com a derrota dos nazis no horizonte, Hitler atribuiu-lhe uma ordem. Paris não se renderia. As tropas lutariam até que o último alemão caísse e a cidade mítica seria totalmente arrasada. Paris quebrada, Paris martirizada. Paris reduzida a cinzas. Há uma lenda (e uma peça de teatro transformada em filme) sobre a noite em que Dietrich von Choltitz decidiu que não ficaria para a História como o homem que destruiu a capital mais bela do mundo. Semanas depois, Paris seria libertada. Meses mais tarde, uma das mais belas cidades alemãs conheceu um destino diferente.
13 de fevereiro de 1945. Dresden ficaria intacta. A pérola alemã com o seu centro histórico e as suas igrejas barrocas, os seus museus de arte e a sua ópera grandiosa daria uma capital administrativa perfeita para os Aliados. A cidade havia sido construída por pedreiros italianos que a esculpiram de forma suave, à imagem dos centros artísticos e humanísticos do resto da Europa. Quem poderia ordenar o bombardeamento da Florença do Elba? Não seria Churchill, que, dizia-se, tinha uma tia a viver na cidade. Os americanos, os ingleses, os europeus em geral, estimavam Dresden, amavam-na como sua. Tal como Paris, Dresden era demasiado bela para ser bombardeada. E por isso, nos primeiros dias de 1945, milhares de alemães – muitos deles refugiados vindos da frente de combate no leste – esperaram angustiados por outra ameaça, a do Exército Vermelho, enquanto viam Dresden pela última vez.
Na madrugada desse 13 de fevereiro, 796 aviões britânicos largaram 4500 toneladas de explosivos e bombas incendiárias sobre a cidade. O centro histórico desapareceu instantaneamente, consumido pelas chamas. No dia seguinte, novo bombardeamento, desta vez pela Força Aérea norte-americana. Dos 220 mil lares de Dresden, 75 mil foram destruídos. No livro Dresden: Tuesday, February 13, 1945, Frederick Taylor escreveu que os nazis, chocados com a quantidade de cadáveres espalhados pelas ruas, ordenaram que cerca de 7000 corpos fossem queimados no local onde horas antes ficava o mercado. Essa tarefa foi executada por experientes oficiais das SS que haviam trabalhado no campo de extermínio de Treblinka.
O número de mortes é problemático ainda hoje, 70 anos depois do ataque. O ministro nazi da Propaganda, Joseph Goebbels, fez circular que seriam entre 100 e 200 mil, ao mesmo tempo que estimava, em privado, que, na realidade, 40 mil pessoas tinham morrido em Dresden. O historiador britânico David Irving, que ficou conhecido por negar o Holocausto, apontou para 500 mil. Um relatório conduzido por historiadores alemães concluiu, em 2008, que os bombardeamentos fizeram entre 18 mil a 25 mil vítimas mortais.
Mas, como escreveu Frederick Taylor na revista Der Spiegel, para muitos, a discussão em torno das mortes desse dia é “uma questão de fé e não uma matéria de factos”. Isto porque o bombardeamento de Dresden – que muitos consideram um crime de guerra e uma decisão errada (porquê destruir uma cidade que, aparentemente, não tinha indústrias bélicas?) da parte dos Aliados, vistos, até então, como heróis num conflito entre o bem e o mal – foi utilizado com fins propagandísticos. Dresden quebrada, Dresden martirizada e reduzida a cinzas. “O Holocausto alemão”. “A nossa Hiroshima”. Dresden vitimizada e vítima.
O fim do humanismo
Depois da destruição da bela cidade de Dresden, quase respiramos de alívio. Acabou-se. Ao focarmo-nos na vitória, não mais seremos distraídos pelas preocupações com os monumentos da cultura alemã. Para a frente! … Marchamos agora em direção à vitória alemã sem qualquer lastro supérfluo e sem a pesada e burguesa bagagem espiritual e material.
O discurso oficial não o deixaria perceber, mas para alguns líderes nazis o bombardeamento de Dresden foi uma oportunidade. O texto acima foi escrito por Robert Ley, o chefe da Frente Alemã do Trabalho, uma organização nazi que substituiu os sindicatos. Tal como explicou Frederick Taylor em Dresden: Tuesday, February 13, 1945, Ley comemorou a destruição da cidade pouco depois do bombardeamento. Para este nazi, o desaparecimento de Dresden, tal como existia até aí, significou também o fim da sua herança arquitetónica e do seu passado humanista.
No mesmo livro, é dito que Goebbels sugeriu a Hitler aproveitar a situação ordenando a execução de dezenas de milhares de prisioneiros de guerra aliados. Um por cada uma das vítimas em Dresden. A forma como o ministro nazi da propaganda utilizou o caos já foi muito analisada. Como escreveu a revista New Yorker, Dresden foi o “derradeiro ato de manipulação de Goebbels”, que garantiu que a cidade não tinha qualquer indústria de guerra e que, por isso, o bombardeamento havia sido um ato puro de destruição cultural e uma matança em larga escala.
Numa conferência de imprensa no dia 16 de fevereiro, em Paris, um responsável para a imprensa da força aérea britânica afirmou que o bombardeamento tinha como principal objetivo impedir as deslocações do exército alemão. “Evitar que eles conseguissem deslocar equipamento militar”, disse, acrescentando, depois uma frase fatal: “Tentámos destruir o que restava da moral alemã”.
O rascunho da Associated Press que saiu dessa conferência passou pelas mãos dos censores oficiais que, mesmo assim, deixaram passar a mensagem essencial. “Os Aliados tomaram a decisão de adotar um bombardeamento de terror deliberado sobre os centros populacionais alemães para apressar a derrota de Hitler”. A imprensa britânica reagiu com horror. O London Daily Mirror escrevia: “Isto é absolutamente terrível. Comprova, oficialmente, tudo o que Goebbels disse sobre o assunto”. Winston Churchill acabaria por dizer que o bombardeamento de Dresden tinha sido “imoral”.
Frederick Taylor defendeu em Dresden que para os Aliados a cidade era um alvo tão legítimo como qualquer outra cidade alemã, numa altura em que o conflito na Europa não tinha um fim à vista. Isto porque os complexos industriais de Dresden, famosos, antes do conflito, pela produção de porcelana Meissen, foram transformados e convertidos para o uso militar. Muita da mão-de-obra utilizada nestas fábricas vinha diretamente dos campos de concentração e fabricava equipamento utilizado pela Luftwaffe (força aérea alemã). Além disso, a cidade era um corredor importante para o tal movimento das tropas nazis.
“Dresden foi um ataque médio por parte dos Aliados”, disse o historiador Thomas Widera ao Independent. De facto, mais pessoas morreram no assalto das forças aliadas à cidade de Hamburgo, em julho de 1943, ou no bombardeamento alemão de Estalinegrado, em agosto de 1942. Como escrevia a Der Spiegel em 2005, o bombardeamento de Dresden foi o culminar de anos de ataques semelhantes em cidades alemãs pelos britânicos e os norte-americanos. E foi também a concretização perfeita da consciência de que a melhor forma de destruir uma cidade passava por incendiá-la a partir do ar.
Depois de 1945, Dresden transformou-se numa cidade socialista da Alemanha de Leste e o bombardeamento foi utilizado pelos governantes comunistas como arma de arremesso contra o Ocidente durante a Guerra Fria. Todos os anos, o dia 13 de fevereiro era comemorado com acusações dirigidas aos “Gangsters aéreos anglo-americanos” responsáveis por “centenas de milhares” de mortes.
Uma espécie de IKEA
A Igreja de Nossa Senhora – Frauenkirche – é um dos símbolos mais famosos da reconstrução de Dresden. Mas durante décadas, as suas ruínas foram preservadas como símbolo da destruição aliada pelo regime da Alemanha de Leste que proibiu as obras. Um monumento de pedras negras e um silêncio permanente onde antes tocavam sinos. Ao mesmo tempo, a reconstrução de outros elementos da cidade avançou com rapidez. Em 1955, a restaurada Igreja da Cruz Sagrada, Kreuzkirche, foi inaugurada. Em 1985, 200 mil pessoas reuniram-se para a reabertura da Ópera.
Sessenta anos depois, Dresden recuperou aquela que é considerada por alguns a “alma da cidade”. Em outubro de 2005, os sinos da Frauenkirche voltaram a tocar. A paisagem de Dresden reorganizada, como se de peças de lego se tratasse. O edifício da Igreja seria idêntico ao original, não fossem os diferentes tons das pedras utilizadas na sua reconstrução. É que entre os milhões de blocos de arenito que incorporam a fachada, há cerca de 4000 pedras mais escuras. Foram recolhidas pelos habitantes da cidade nos dias seguintes ao bombardeamento ou antes da destruição total das ruínas, e reutilizadas. Dentro de décadas, devido à oxidação, todas as peças serão da mesma cor e o trabalho de reconstituição terá, por fim, terminado.
Há quem critique esta arquitetura de facsimile – como considerou a New Yorker – e defenda que Dresden se transformou numa “espécie de IKEA”. A comparação é de Martin Roth, diretor-geral das coleções de arte da cidade, em declarações à revista. “É como um parque temático. Se queremos dar-lhe vida novamente, temos de mudar algumas coisas, de alguma forma. Tem de existir algum sinal de que as coisas não são o que eram”, disse, acrescentando que o mais importante é “a ideia da Frauenkirche”. Um tipo diferente de simbolismo. A Igreja onde Bach tocou e a cidade onde Mozart, Beethoven e Goethe estiveram como símbolos da “cultura alemã”. Até porque, “depois de Auschwitz, há poucos motivos de orgulho em ser alemão. Mas temos sempre a cultura. Temos Mozart, Beethoven e Goethe”.
Eberhard Renner tinha 12 anos quando, em fevereiro de 1945, uma das bombas lançadas pelos britânicos aterrou no jardim da sua casa, acabando por explodir. A família deixou Dresden e sobreviveu. Renner falou com o jornal Independent a propósito da comemoração dos 70 anos do bombardeamento e lamentou a vasta área de cimento que ainda ocupa grande parte do centro da cidade. Uma herança do regime comunista da Guerra Fria, que optou pela construção de edifícios funcionais e uniformizados. “A maior parte das casas em Dresden tinha escadarias de pedra que sobreviveram ao bombardeamento. A cidade teria sido facilmente reconstruída”, disse.
Um historiador de Dresden ouvido pela New Yorker, Matthias Neutzner, pensa que a cidade tem uma grande resistência ao passado, como se de alguma forma o bombardeamento tivesse sido uma espécie de ano zero a partir do qual se pode reescrever a história. “A cidade foi apagada numa noite e foi muito fácil para a propaganda alemã transformar esta cidade de arte numa cidade da inocência que não teve qualquer relação com os crimes de guerra”, disse, acrescentando que a história de Dresden tem apenas uma data: “começa e acaba no dia 13 de fevereiro de 1945″. Para Neutzner, é importante que os habitantes de Dresden tenham consciência de que aquela data ocorreu “no sexto ano de uma grande guerra, que houve 12 anos de crimes nazis, que na cidade havia oito campos de concentração com 3000 prisioneiros. Tudo isto é desconhecido aqui”, lamentou.
Cidade vítima
Na sexta-feira, os discursos oficiais nas cerimónias que assinalam os 70 anos do bombardeamento de Dresden serão de reconciliação. Haverá uma missa em Frauenkirche conduzida pelo Arcebispo da Cantuária, Justin Wellby, e o Duque de Kent será agraciado com um prémio pelos seus esforços para reunir antigos inimigos, como escreve o Telegraph.
Isto à superfície. A um nível mais profundo, há feridas que continuam abertas. O editorial do Guardian esta quinta-feira condena o facto de no Reino Unido não se realizar uma cerimónia oficial que assinale o aniversário. “As novas gerações têm a responsabilidade de questionar como se justificam os ataques de Dresden ou outros semelhantes e refletir sobre o que estes nos dizem nos dias em que vivemos. Nada disto é fácil. O que não é correto é deixar de fora da narrativa heróica da guerra – que preferimos passar às gerações futuras – um episódio tão difícil”.
Ao mesmo tempo que estarão a decorrer as cerimónias oficiais, é muito provável que o centro histórico da cidade de Dresden – a que a New Yorker chama o “epicentro da vitimização alemã” – se encha de manifestantes de cabeças rapadas e vestes com suásticas.
O Estado alemão da Saxónia é fértil em termos de movimentos neo-Nazis e de extrema-direita e Dresden, ou melhor, o Altstadt, é o local para onde estes convergem. É aí que têm repetido nos últimos anos o grito de ordem: “Auschwitz + Dresden = 0″. É aí que reivindicam uma espécie de equivalência moral. “Dresden é o nosso Holocausto”. Ou que defendem mesmo que os crimes do Terceiro Reich não se comparam à matança ocorrida na pérola alemã em 1945. Geralmente, em resposta ao protesto, hordas de manifestantes de extrema-esquerda tentam travar o avanço dos neo-Nazis.
“O dia é cada vez mais político. Há a extrema-direita por um lado e a extrema-esquerda por outro. A ideia de recordar está a perder-se”, disse Ursula Elsner, que sobreviveu ao bombardeamento, ao Telegraph.
No último ano, um novo movimento nascido em Dresden chamou a atenção mediática internacional. Trata-se do Pegida, um movimento que diz representar os Europeus Patrióticos contra a Islamização do Ocidente e que conseguiu reunir 25 mil pessoas numa manifestação em Dresden no mês de janeiro. Apesar de o Pegida não ter feito referências ao bombardeamento da cidade em 1945, Frederick Taylor, em declarações ao Telegraph, vê uma ligação entre os dois.
“Relaciona-se com o sentimento de vitimização que corre na cidade. Os traumas não resolvidos de 1945 são um terreno fértil para este tipo de sentimentos”, disse. Hans Vorländer, um cientista político de Dresden ouvido pelo Independent, pensa que “a mitologia da vitimização é central para a identidade cultural coletiva da cidade”.