Inês do Canto, 16 anos, diz já ter sentido os efeitos de ter nascido num mundo onde quase tudo se faz com um dedo a deslizar pelo écrã. Sabe que quer ser música e desde cedo que toca saxofone no Hot Club. Mas, numa determinada altura, os progressos na prática do instrumento não se faziam notar. Inês encontrou dificuldades e desistiu. Agora, com a distância analítica de ter aprendido com um erro, pensa ter compreendido o que aconteceu: “Somos uma geração muito rápida, estamos habituados a ter tudo muito rápido, com a Internet. Quando não temos tudo rapidamente, desistimos ou ficamos desmotivados”.
Inês voltou ao saxofone, determinada a apostar numa carreira no mundo da música e consciente de que o jogo que quer jogar se faz no longo prazo. É quase como correr uma maratona — não há gratificações instantâneas, mas um plano estratégico de doseamento de esforço e de intensidade para chegar à meta. “Um dos traços mais vincados da minha maneira de ser é pensar sempre no longo prazo”. E nesse seu plano estratégico, a Internet, utilizada em moderação e com um propósito bem definido, é uma ferramenta valiosa. “Uso as redes sociais para divulgar o meu trabalho. Sei que há muita gente a querer o mesmo que eu, sei que há muita porcaria que é preciso filtrar, tenho algum receio, mas sei que agora, mais do que nunca, é mais fácil ser empreendedora”, diz.
Inês demonstra uma consciência que parece não colar à imagem generalizada que é feita dos jovens e adolescentes da Geração Z, a designação mais utilizada para referir o grupo de crianças, adolescentes e jovens nascidos entre 1994 e 2012, no momento de afirmação e consolidação da Internet. Depois dos Baby Boomers, da Geração X e Y (também conhecida por Milénio), chegou a vez da Geração Z. E em Portugal são praticamente dois milhões.
Facilmente se olha para estes jovens como seres fúteis, vazios e narcisistas, incapazes de pensar além da selfie, da aprovação nas redes sociais. Tememos o aumento do défice de atenção nas crianças pela sua incapacidade de largar o telemóvel, a televisão, os videojogos, o computador — tudo ao mesmo tempo, respondendo a uma velocidade estonteante aos estímulos sociais que chegam de todas as frentes. Lemos relatos de novas formas de pressão dos pares, de humilhações invasivas, disponíveis para o mundo inteiro assistir.
E, tal como aconteceu com as gerações anteriores (cada uma considerada mais narcisista e vazia do que aquelas que a antecederam), os mais velhos receiam que os jovens e as crianças de hoje não estejam à altura de herdar o desafio e acabem por transformar o mundo para pior.
Os miúdos da chamada Geração Z não conhecem outro mundo e outro modelo de sociedade que não aquele que a Internet uniu e moldou. Mais do que isso, esta geração cresceu a explorar a Internet nos dispositivos móveis, gozando de um acesso quase imediato a tudo e a todos.
Mas a velocidade que experimentam todos os dias, essa sensação quase vertiginosa de que tudo está em permanente mudança, não é característica dos grupos de amigos e das esferas privadas da Geração Z. Nestes vinte anos, não foi só a tecnologia que mudou e evoluiu. A economia e a política mundial atravessam transformações profundas, com o 11 de Setembro, que deu início a uma nova ordem mundial marcada pelo terrorismo islâmico, a crise financeira de 2007 e o aquecimento global. Neste espaço de tempo, muitos países do mundo ocidental debateram causas progressistas como o casamento gay e a adopção por casais homossexuais. Recentemente, o feminismo parece estar de novo na moda, com uma roupagem mais moderna e protagonistas que, muitas vezes, já são jovens Z, com uma linguagem e formas de actuação próprias das redes sociais.
Somos uma geração muito rápida, estamos habituados a ter tudo muito rápido, com a Internet. Quando não temos tudo rapidamente, desistimos ou ficamos desmotivados.
Os membros mais velhos da Geração Z serão, provavelmente, novos demais para se lembrarem do “tempo das vacas gordas” e da sensação de “fim da História” que se seguiu ao colapso da URSS e à consequente década de prosperidade dos anos 90, em que o mundo ocidental seguiu a liderança unipolar dos Estados Unidos e se iludiu com a Pax Americana. A geração anterior assistiu, a meio, às mudanças das regras do jogo, foi obrigada a redefinir expectativas, sentiu-se enganada e desiludida.
Pelo contrário, o habitat natural da Geração Z é também o do desemprego e da precariedade. As palavras chave deste período: crise, défice, austeridade. Medo. Os remédios não são milagrosos — porque já ninguém acredita em soluções que durem para sempre — e há que estar preparado para tudo, ser consciente, ter um plano B, C, D. Sonhar com os pés assentes na terra. Pensar no longo prazo, como Inês.
Um relatório da agência de publicidade norte-americana Sparks & Honey concluiu que a Geração z, em comparação com a Milénio, é mais “madura” e tem uma vontade maior de “mudar o mundo”. Segundo a Sparks & Honey, 60% dos jovens Z acredita mesmo que vai deixar uma marca no mundo, por oposição a 39% de Milénios.
Qual é o impacto de todas estas transformações na formação dos jovens da Geração Z? Que responsabilidades acrescidas têm pais e professores na educação de crianças que parecem preferir o mundo virtual ao contacto com os outros? Teremos de pensar num novo conjunto de direitos — digitais — para proteger a privacidade desta geração? Que planos conseguem traçar para o futuro?
Avós no Facebook, jovens em fuga
Alice Magalhães, 12 anos, Mafalda Portugal, 12 anos, Inês Capela, 12 anos e Sarah Lopez, 13 anos, estão ligadas sempre que quiserem. A amizade, cumplicidade e a linguagem “só das quatro” que dizem ter desenvolve-se num espaço privado que não é o da escola, nem o das festas de aniversário ou dos trabalhos de grupo. Esse espaço não obedece a horários, não necessita de um lugar físico e não está dependente da disponibilidade dos pais nem sujeito às suas regras ou à sua linguagem. Esse espaço é o das redes sociais como o Instagram, o WhatsApp, o Twitter, o Snapchat, ou o Facebook, mesmo que, teoricamente, estas redes não admitam membros com menos de 13 anos (no final de 2015, a Comissão Europeia propôs que os menores de 16 anos ficassem interditos de utilizar o Facebook, o Instagram ou o Twitter, caso não tenham autorização parental para o fazer).
É pela naturalidade com que se movimentam nestas redes que a Geração Z recebeu também o nome de Geração Aplicação. À excepção de Sarah, proibida pela mãe de aderir à rede criada por Mark Zuckerberg, todas as outras arranjaram uma forma de contornar a regra. “A minha tia criou por mim e pôs lá a idade dela”, diz Alice, que está no Facebook há dois anos. Inês estreou-se na rede com oito anos, “com a ajuda da irmã”.
Mas o Facebook está a deixar de interessar aos jovens da Geração Z. Em 2013, uma adolescente de 13 anos, Ruby Karp, escreveu um texto no site norte-americano Mashable que se tornou viral por ter explicado aos adultos que os seus amigos e colegas estão a deixar o Facebook, que agora é apenas “o sítio onde os pais estão”. A chegada dos familiares ao Facebook leva alguns destes jovens a migrar para outras redes onde os pais ainda não entraram. “Já vamos na fase em que os avós estão no Facebook”, diz Mafalda Rola, 16 anos, também estudante na Escola Secundária Professor José Augusto Lucas em Linda-a-Velha. “Nós fugimos para o Twitter”, continua.
Uma rede que é cada vez mais popular, sobretudo entre os mais jovens, é o Snapchat, cuja grande característica é permitir enviar uma fotografia que se apaga em dez segundos. “Há pessoas que têm medo que as coisas fiquem permanentes e daquilo que os outros pensam”, diz Mafalda, para começar a explicar por que razão o Snapchat pode ser tão atractivo para os jovens. “Se enviarmos uma foto pelo Snapchat sabemos que ninguém vai mostrar a um amigo e comentar: ‘Está tão ridícula’ ou ‘Está mesmo feia, cheia de borbulhas’”, diz.
Os pais, mesmo aqueles que chegaram ao Facebook, não compreendem totalmente o funcionamento das outras redes, o que levanta todo o tipo de preocupações e suscita diferentes posturas — autorizar, proibir, ignorar — relativamente ao acesso que os filhos fazem destas aplicações.
Telma Miguel, mãe de Alice e de Teresa, de 16 anos, sabe que não consegue estar em cima de tudo o que as filhas fazem online, mas não vê vantagens em transformar as redes sociais no fruto proibido e apetecido. “Se as vamos proibir, elas não sabem conviver com o mundo delas. Não vale a pena obrigá-las a fazer às escondidas porque assim torna-se secreto e deixamos de ter acesso”, diz.
Joana Deus, 12 anos, recebeu o telemóvel no último aniversário, há poucos meses. Foi a última aluna da turma a ter telemóvel e mesmo assim a mãe, Luz Pimentel, continua a acreditar que não precisa dele. Joana não tem qualquer acesso às redes sociais no telemóvel e o Facebook está proibido mesmo no computador lá de casa. Usa a Internet para trabalhos escolares e para ver alguns vídeos de youtubers portugueses, geralmente sobre jogos. Mas sabe o que é o Instagram, o Viber, o Snapchat, o WhatsApp, porque quase todas as colegas usam. Já chegou a aparecer numa conta Instagram de uma amiga, tendo depois pedido que a fotografia fosse retirada porque não tinha dado autorização para a publicação.
Com apenas 12 anos, vive rodeada por todas estas experiências sem ter ainda entrado nesse mundo e diz ter muito receio dos perigos das redes sociais e da Internet. Teme o momento em que irá estrear-se nas redes. “Tenho medo que mude aquilo que eu sou e quero ser”, diz, referindo-se às notícias mais negativas que lhe vão chegando. “Alguns adolescentes ficam muito deprimidos por situações na Internet e não quero que isso aconteça comigo”.
Cristina Ponte, investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tem estudado a relação das crianças com os media e a inclusão digital. Diz que os pais, resistindo à tentação de proibir os filhos de utilizar estas redes, devem antes prepará-los para a autonomia. “Os pais devem ensinar os filhos a não terem de responder a tudo o que os amigos pedem para fazer” e a compreenderem que têm o direito “a estar (online) e a não estar”. Cristina Valente, psicóloga e autora do livro Coaching para Pais, pensa que o equilíbrio entre permitir a utilização da Internet e evitar excessos passa por fortalecer a estrutura dos “valores familiares não negociáveis”. Desta forma, diz, permitir que uma criança tenha acesso ao Facebook quando não tem ainda idade para o fazer passa aos jovens uma mensagem moral: “Os pais permitem que isso aconteça sem reflectirem o que isto implica em termos de escolhas morais. Estou a dizer-lhes que posso enganar uma empresa e que posso contornar a lei”.
Por vezes, na equação da responsabilidade, falamos dos educadores e esquecemos uma parcela importante, ainda que aparentemente distante da vida diária das crianças. “A Geração Z não é responsabilidade exclusiva dos pais e dos professores, mas também das indústrias, das empresas, da regulação”, defende Cristina Ponte, que chama a atenção para o facto de a presença das crianças online se traduzir num “negócio brutal para as companhias de consumo”, como as operadoras móveis, por exemplo. Segundo esta investigadora, estima-se que, actualmente, um terço dos utilizadores da Internet tenha menos de 18 anos. A investigadora lembra como “as empresas de telecomunicações proporcionam o consumo dos adolescentes”.
Em Portugal, as três operadoras móveis têm campanhas destinadas à Geração Z e em alguns casos isso traduz-se na oferta da utilização gratuita das aplicações das redes sociais (a utilização do Facebook, WhatsApp, etc não consome dados de Internet). Num dos sites destas operadoras há um apelo ao consumo em forma de provocação e de pressão de grupo. O tarifário que está a ser vendido “não é para quem quer”, pode ler-se, “convém teres smartphone”.O PÚBLICO tentou contactar as três operadoras móveis, não obtendo resposta no caso da MEO e recebendo, por parte da Vodafone e da NOS, a recusa em participar neste trabalho.
Pedro Castro Pinho, criativo na agência de publicidade O Escritório, responsável pela marca do tarifário Moche, da MEO, diz que a estratégia publicitária por detrás das campanhas desta marca dirigida aos jovens sub 25 não leva em conta outras características associadas à Geração Z além da dependência da Internet. De resto, a linguagem utilizada, muitas vezes com um cunho sexual (“Faz-me um like”) ou algo rebelde (a Moche teve um anúncio polémico em que um jovem desligava a máquina que mantinha vivo o avô para poder carregar a bateria do telemóvel) tem o objectivo de “falar aos jovens” e, se calhar “os jovens com 15 anos de há vinte anos também achavam piada a isso”, diz.
A Geração Z não é responsabilidade exclusiva dos pais e dos professores, mas também das indústrias, das empresas, da regulação, diz Cristina Ponte.
Várias organizações da sociedade civil, bancos, associações de direitos das crianças e empresas, juntaram-se à iniciativa iRights, que quer definir os direitos digitais para que crianças abaixo dos 18 anos possam utilizar as tecnologias digitais “de forma criativa, sem medo e com conhecimento”. Estes são: direito a remover toda a informação e dados disponibilizados online; direito a saber quem está a utilizar a informação que foi cedida e quem lucra com essa informação, vendendo-a para fins de publicidade ou outros; direito à segurança e ao apoio em caso de situações de risco criadas online; direito a escolhas informadas e conscientes; direito à literacia digital.
Os pais e educadores têm outros receios relacionados com o uso das tecnologias e das redes sociais, temendo os efeitos destas na aprendizagem, levantando dúvidas sobre as consequências do multitasking na capacidade de concentração e questionando-se sobre a qualidade das relações das crianças.
O psicólogo José Morgado explica ao PÚBLICO que, de uma forma ou de outra, estes receios existem em todas as gerações, mas adequados às realidades específicas de cada período. “Os pais estão sempre preocupados com as ‘más companhias’ dos filhos. Na Internet há um upgrade dessa preocupação — está ligado a quem, a fazer o quê? É normal que os miúdos a partir dos 11 anos comecem à procura dos seus amigos e encontrem as suas tribos. Se um miúdo dessa idade está ligado ao computador, isso é normal na idade dele. Depois há efeitos colaterais — se o excesso de contactos altera os hábitos de sono, por exemplo. Mas aí trata-se de uma questão pedagógica. O erro não é o miúdo estar no computador, o erro é os pais permitirem que ele tenha o computador (ou o telemóvel) no quarto e esteja a usá-lo às 3h da manhã”, diz.
José Morgado utiliza uma fórmula semelhante para desmistificar a ideia de que os jovens da Geração Z não consolidam as aprendizagens apenas porque utilizam o Google em excesso. “Se eu exercitar aquilo que vi no Youtube ou li no Google, fico a saber, aprendo”, diz, em defesa dessas fontes de informação. O problema, acrescenta, está na insuficiência dos filtros que os jovens terão. E isso, mais uma vez, combate-se com educação e pedagogia, e não com a proibição da prática. “Temos deacompanhar a utilização das novas tecnologias com inovações do ponto de vista da forma como ensinamos o aluno a pesquisar. Temos de ensiná-los a filtrar informação e a fazer buscas pertinentes para que não fiquem intoxicados. Ou corremos o risco de criar um gap muito evidente entre a aprendizagem na sala de aula e as que existem lá fora. Há que diminuir esse gap, trazendo essas ferramentas para a escola para que as crianças possam aprender a usá-las de forma regulada”, diz.
Um projecto de vida para tempos incertos
É também de educação e de pedagogia que fala José Morgado quando se refere à dificuldade de os pais ajudarem os seus filhos, herdeiros da crise e da precariedade, a projectarem um futuro.
“Na minha geração estudávamos para ser alguém e vislumbrávamos esse caminho. Muitos jovens têm dificuldade em construir um projecto de vida e aquele discurso de que os licenciados não têm emprego não ajuda”, afirma o psicólogo. “Temos de acreditar — pais e profissionais — que mesmo em tempos de crise é possível construir um projecto de vida”.
Os jovens da Geração Z com quem falámos parecem ter os seus sonhos. Mas, mesmo quando falam de ambições profissionais mais ligadas a um percurso artístico ou mediático, têm um projecto de vida pensado para enfrentar mudanças, crises, alteração das circunstâncias, desilusões e sonhos desfeitos.
Não têm sonhos tão ambiciosos como eu tinha na idade delas. Elas vão decidindo à medida que as coisas acontecem, tomam decisões passo a passo e têm uma grande disponibilidade para mudar.
Filipe Miranda, 18 anos e um sonho ainda viável: ser jogador de futebol. Filipe vive no Fogueteiro, joga no Cova da Piedade e ambiciona um dia chegar a um grande clube. “O meu plano A é ser jogador de futebol”, diz. Filipe não fala apaixonadamente de ser o próximo Cristiano Ronaldo ou o Luís Figo. Fala de metas e caminhos para lá chegar. E de como a sua prioridade é o futebol e os treinos e um estilo de vida — sem grande espaço para as redes sociais, diz — que permita sustentar esse projecto. Mas fala também do momento em que pode perceber que o sonho não se concretizou — “Quando vir que estou num clube que não me dê futuro”.
A existência de um plano A pressupõe que haja outros caminhos e Filipe decidiu continuar os estudos. Está neste momento a frequentar o primeiro ano de Contabilidade no ISCAL, esperando conseguir transferência para o ISCTE ou o ISEG para estudar Gestão. “Mesmo que consiga o meu sonho A, um dia mais tarde — o futebol acaba cedo — gostava de ter a minha própria empresa”, diz.
Telma Miguel, a mãe de Alice, diz que as filhas pensam no futuro de forma muito diferente da sua geração. “Não têm sonhos tão ambiciosos como eu tinha na idade delas. Eu e os meus amigos pensávamos que se estudássemos e fizéssemos as coisas certas, ia ser tudo a somar. Acho que elas sabem que as coisas não são assim e entendem que há muita gente à procura da mesma coisa, que é cada vez mais escassa. Elas vão decidindo à medida que as coisas acontecem, tomam decisões passo a passo e têm uma grande disponibilidade para mudar”, diz.
O professor na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Daniel Cardoso confirma a percepção desta mãe. “É uma geração que foi ensinada, para o bem e para o mal, que terá de se adaptar tão depressa quanto possível ao maior número de mudanças possíveis. Eles vão ficar profundamente marcados pela incerteza biográfica”, diz. Por “incerteza biográfica”, Daniel Cardoso entende a perda de “referenciais sobre o que é crescer e ser adulto”. Os jovens que hoje terminam os cursos superiores, explica o investigador, “não sabem se terão emprego ou se o emprego que têm será suficiente para se sustentarem”. Esta “ausência de um percurso de vida minimamente definido” é um dos grandes marcos sociológicos desta época. “À frente destes jovens não há estabilidade ou certeza, mas sim uma espécie de obrigação de construir a sua marca”, diz o investigador.
É esta “individualização”, este foco numa “biografia do it yourself” que adia essa chegada ao mundo dos adultos. “Se eu faço de uma maneira e outro faz de outra, afinal o que é ser adulto? Quais são os marcadores de sucesso?”, pergunta Daniel Cardoso, sublinhando que esta mentalidade pode ter também um lado muito negativo. “Este discurso pode ser mobilizado negativamente para dizer que se a pessoa não for bem sucedida, a culpa é dela. Este tipo de postura pode promover uma atitude de salve-se quem puder”.
Kim Kardashian vs Malala Yousafzai
Pedro Marques, 19 anos, sente pela geração a que pertence uma desilusão tão grande que preferiu virar-lhe as costas. Quando estava no 11º ano desistiu de estudar e não chegou a concluir o ensino secundário. “Não me sentia feliz”, diz. Agora, passa os dias num atelier na Associação de Artes e Ofícios no Barreiro, onde se dedica aos seus quadros e a ensinar crianças a pintar. Pedro diz ser mais feliz assim. “O meu projecto de vida passa por ter comida para o dia a seguir. Mesmo que fique só a pensar acho que isso já é válido”.
Pensar é aquilo que Pedro acha que a sua geração não faz. “Esta geração… Há uma cena horrível que é o valor do entretenimento. As pessoas deixam de pensar. É uma geração que tem muita dificuldade em interessar-se por aquilo que não lhe é imediato ou está distante, como a guerra na Síria”.
Virar as costas também implica tentar ignorar o que está nas redes sociais, que utiliza para, à semelhança de Inês do Canto, promover o seu trabalho artístico. “No outro dia no Twitter, uma miúda escreveu: ‘Quem precisa de Pessoa e Camões quando há [o rapper] Regula’?”, lembra Pedro, irritando-se e ameaçando atirar com o iPad que tem ao seu lado. “Pensa noutra merda”, diz, como se estivesse a falar com a colega.
Ao desafio de imaginar um quadro que represente a sua geração, Pedro responde com a ideia de retratar os colegas dentro de um smartphone a tirar selfies do lado de fora. “Para ver se os punha a pensar que a maior parte delas está trancada lá dentro”.
O quadro de Pedro é o retrato mais negativo da Geração Z, o retrato que mostra jovens que, incapazes de tirar os olhos do écrã, se esquecem do mundo à sua volta, ignorando aquilo que não diz respeito a si próprios, como sugerem as palavras de Pedro. Uma geração liderada pela socialite Kim Kardashian e obcecada em tirar selfies.
Mas a geração que segue o reality show das irmãs Kardashian é também aquela que pode seguir Malala Yousafzai, a activista paquistanesa dos direitos das mulheres e da luta pelos direitos de educação que foi condecorada com o Nobel da Paz em 2014 e é uma jovem de 18 anos. Ou que pode escolher seguir Martha Payne, a menina escocesa que em 2012, com apenas 9 anos, começou a tirar fotografias das refeições escolares e a publicá-las num blog para denunciar a falta de qualidade das mesmas nas cantinas e incentivando crianças de todo o mundo a fazer o mesmo. O sucesso do blog foi tal que Martha conseguiu angariar dinheiro para a iniciativa de caridade Mary’s Meals, que organiza projectos alimentares em comunidades pobres de todo o mundo. Ou que pode admirar a brasileira Isadora Faber, que também em 2012, com 13 anos, e munida de um telemóvel, criou a página de Facebook “Diário de Classe — A Verdade” para retratar as falhas e as deficiências da sua escola e chamar a atenção para o estado das escolas públicas no Brasil. Isadora tem dado palestras por todo o país, chamando a atenção para o problema. Em 2013, o Financial Times escolheu-a como uma das 25 personalidades brasileiras mais influentes no Brasil.
Tito de Morais, que criou o site miudossegurosna.net, um projecto que ajuda famílias e escolas a promover a utilização responsável das tecnologias, utiliza estes exemplos para exprimir o seu optimismo pelo potencial da Geração Z para mudar o mundo. “Estes jovens mostram que têm estas noções e comportamentos de cidadania. O que poderão fazer quando chegarem a posições de poder?”
Tito de Morais lamenta apenas que em Portugal aquilo que a Geração Z vai dando a conhecer são “os aspectos menos desejáveis, os mais espampanantes, os mais fúteis e os mais negativos”. Por que razão não apareceram ainda jovens tão influentes como nos casos a que nos referimos lá fora? Tito de Morais tem uma resposta clara: “Não capacitarmos os jovens para eles se assumirem como os seus próprios porta-vozes”.
Em Portugal há já alguns casos de youtubers populares que ganham dinheiro com os vídeos que colocam nessa rede social, mas poucos são aqueles que tentam passar uma mensagem que vá além do humor e de relatos mais superficiais. Kiko is Hot, ou Francisco Soares, um jovem Z de 21 anos, estreou-se no Youtube em 2011 e hoje conta com 97 mil subscritores.
Somos uma geração de transição que está a tentar transformar isto. Quando formos mais velhos acho que as coisas já vão estar muito diferentes. É possível que uma pessoa nasça sem ter na cabeça se será aceite ou não — esse é o meu desejo.
A popularidade que ganhou na rede já lhe permitiu ter programas na televisão e participar em campanhas publicitárias, sendo hoje um dos rostos da WTF, o tarifário da NOS direccionado à Geração Z. Francisco Soares decidiu utilizar o Youtube para “fazer as pessoas rir”, mas começou a receber muitos e-mails de pessoas que viam nele um exemplo de coragem. Kiko is Hot tem um look andrógino, utiliza o cabelo comprido e maquilhagem e assume-se na comunidade LGBT. Então, Francisco Soares decidiu começar a abordar questões mais activistas, abordando temas como a auto-estima, a ansiedade, o bullying e as dificuldades sentidas pelos jovens em se assumirem como gays ou lésbicas. “Sigo muitos bloggers e youtubers lá fora que discutem estas questões, mas no panorama português do Youtube não havia ninguém que falasse dessas coisas mais sérias e decidi ser o primeiro”, diz.
Sobre a Geração Z, Francisco Soares diz que é “uma geração com pouca produtividade”, que tem dificuldade em “levar um projecto até ao fim”, mas que é, ao mesmo tempo, “muito empreendedora e tem ideias novas, o que se vê nos exemplos de pessoas que pegaram em câmaras e fizeram carreiras disso”, diz. Mas nota também que um dos grandes traços dos jovens Z é o activismo e a luta pelos direitos feministas, LGBT… “Somos uma geração de transição que está a tentar transformar isto. Quando formos mais velhos acho que as coisas já vão estar muito diferentes. É possível que uma pessoa nasça sem ter na cabeça se será aceite ou não — esse é o meu desejo”.
O investigador Daniel Cardoso afirma que a obrigação de estes jovens criarem a sua marca e a sua “biografia do it yourself” abre também espaço “ao debate de temas que estão relacionados com a sexualidade, identidades de género, estruturas relacionais”. É dada grande visibilidade à história de cada um, ao individualismo, a como cada jovem é único. O psicólogo José Morgado não tem certezas na hora de dizer se esta geração vai ser mais tolerante. Isto porque, apesar de estes miúdos serem “mais abertos e mais flexíveis”, as tomadas de posição que têm muitas vezes “não correspondem a mobilizações activas”.
Inês do Canto, pensando sobre o seu próprio exemplo, faz um retrato muito calibrado da Geração Z. Apesar de lamentar a tendência dos jovens para “desistirem” ao primeiro contratempo, elogia a elevada consciência das dificuldades que o futuro reserva e a capacidade para, como no seu caso, “pensar a longo prazo”.
Essa capacidade também se traduz na forte “consciência política” que nota entre amigos e colegas. “Temos mais noção do que outras gerações de que o Donald Trump [candidato nas primárias americanas pelo Partido Republicano] pode ser um próximo Hitler”. Inês diz que esta geração está empenhada em lutar pela igualdade. “Somos contra o sexismo, o racismo, a homofobia. Eu e os meus amigos tentamos assinar petições ou ajudar alguém que não se sinta bem”, afirma, antes de acrescentar que talvez seja uma “activista hipócrita”, sugerindo que existe uma distinção entre tomar posição e mobilizar-se realmente.
Lamenta que em Portugal não haja figuras de referência jovens e adianta que os seus ídolos são “Francisco Louçã e Mariana Mortágua” porque “pensam como a Geração Z”. Quando lhe perguntamos se está mais à esquerda a nível político, diz que não é de esquerda nem de direita e revela que teria votado em Marcelo Rebelo de Sousa nas últimas presidenciais. “A nossa geração não tem rótulos”, afirma.
Parando para pensar nessa rejeição dos rótulos, Inês diz que existe uma certa cacofonia na sua geração, em que cada um tem o desejo de ser único e de afirmar as suas diferenças. Por isso mesmo, pensa numa expressão para descrever o mundo da Geração Z. “Caos… mas caos consciente”, diz. “Cada um de nós é muito convicto das suas opiniões e, ao mesmo tempo, aberto às opiniões dos outros. Lutamos todos pelo mesmo, mas de maneiras tão diferentes que corremos o risco de nos dispersarmos e não fazermos nada com isso”. E acrescenta: “Espero que não fiquemos overwhelmedcom os nossos erros”. Respira fundo e como uma adulta cautelosa e ponderada que aprendeu a sustentar os sonhos e a descer à terra, assegura: “Vamos ficar bem”.