Há uns meses aprendi a estancar uma hemorragia grave com um torniquete, derrubei um homem num fato de duzentos quilos com técnicas de auto-defesa, aprendi o que fazer durante horas numa situação de cativeiro. Essas experiências faziam parte de um treino de segurança em zonas hostis, desenvolvido por uma organização norte-americana a que pertenço. A mesma organização a que pertencia Kim Wall, a jornalista sueca cujos braços, pernas e cabeça foram «mutilados deliberadamente» enquanto trabalhava a bordo de um submarino na Dinamarca.
O corpo de Kim Wall, de 30 anos, foi encontrado numa praia cinquenta quilómetros a sul de Copenhaga. Havia sido dada como desaparecida a 11 de agosto. No dia anterior, tinha ido visitar um submarino artesanal para entrevistar o seu inventor, o dinamarquês Peter Madsen. Quando no dia 12 de agosto soube pela primeira vez do desaparecimento dela, nunca pensei ter hoje esta imagem na cabeça: «a polícia dinamarquesa encontrou o torso da jornalista sueca numa praia a sul de Copenhaga».
«Fiz bem em ter apanhado boleia com todas aquelas pessoas em Israel?» «Tomei a decisão certa quando acampei sozinha naquele campo de refugiados na Grécia?»
Entre as jornalistas que conheço, o choque é total. Morreu uma de nós. Morreu uma jornalista freelancer treinada para saber reagir em situações hostis. O que aconteceu? Como aconteceu? O que estamos a sentir? No Facebook, no meu e-mail e no meu telefone desenrolam-se as dúvidas e adensa-se a rede de apoio emocional: «Fiz bem em ter apanhado boleia com todas aquelas pessoas em Israel?» «Tomei a decisão certa quando acampei sozinha naquele campo de refugiados na Grécia?» «Há histórias que nós, mulheres, não podemos se quer pensar tratar?» «Esses riscos parecem-me reduzidos, eu teria feito o mesmo.» «Quanto mais complicada ficava a situação na Síria em 2014, menos eu conseguia pedir ajuda e falar» «Como te sentes?» «Temos de falar.»
A notícia chegou-me primeiro através do grupo de Facebook da comunidade International Women Media Fund (IWMF), uma fundação norte-americana que tem como objetivo reforçar a participação de mulheres jornalistas em todo o mundo e à qual pertenço. No início deste ano, fui selecionada para uma das suas bolsas, que cobriu os dispendiosos custos de formação em ambientes hostis no México e de uma semana de reportagem em El Salvador, um dos países mais violentos do mundo.
A comunidade IWMF é essencialmente constituída por mulheres jornalistas freelance que se aventuram sozinhas em alguns dos territórios mais instáveis e perigosos do mundo e esse era o caso de Kim, que tinha viajado um pouco por todo o lado em busca de histórias originais que publicava depois nos grandes jornais internacionais.
No dia 12, sabia-se apenas que Kim tinha desaparecido em reportagem na Dinamarca e que a organização IWMF estava a tentar localizá-la. Essas duas informações sossegaram-me. «Ela está na Dinamarca, um dos locais mais seguros do mundo»; «A organização à qual pertenço está a tratar do assunto, o que significa que nós, mulheres freelancer, não estamos tão sozinhas quanto pensamos.»
Se faço reportagem num local que considero seguro, onde não me passa pela cabeça ter de me preocupar com torniquetes e ferimentos de bala, nem se quer me apercebo de que estou a esticar a corda.
Nos dias seguintes, a conversa no grupo foi mudando de tom. O feed de Facebook dessa comunidade é um espaço onde mulheres oferecem mentoria e apoio profissional e emocional e é comum ver publicações em que várias mulheres debatem estratégias de encontrar financiamento para realizar uma determinada viagem de trabalho ou as palavras certas para convencer um editor a comprar uma história e depois para lhe exigir que pague o que é devido.
Hoje, essas mesmas mulheres oferecem condolências à família da jornalista Kim Wall e dispõem-se a conversar por telefone ou Skype com aquelas que nos últimos dias passaram em revista todas as situações pessoais que, pensam agora, podiam ter tido desfechos semelhantes. A IWMF avisou os membros da comunidade que podem contar com aconselhamento psicológico se assim o desejarem. Tenho tido a sorte extraordinária de estar rodeada de jornalistas experientes na cobertura de acontecimentos e histórias internacionais que estão abertas a discutir comigo todas as minhas dúvidas. Elas são a minha redação improvisada.
Não sabemos ainda que precauções tomou Kim Wall antes de, a 10 de agosto, subir a bordo do submarino de Peter Madsen, inventado pelo próprio dinamarquês. Não fazemos ideia se tinha consciência de que corria algum risco e de que tipo de risco corria. Não sabemos quem deixou de sobreaviso. Não sabemos se estava a perseguir a história com o acordo pré-estabelecido de publicá-la num meio específico (o dia-a-dia de muitos jornalistas freelance é passado a tentar o equilíbrio entre as histórias que já venderam e aquelas em que acreditam, mas para as quais não conseguiram ainda uma comissão ou o pagamento de despesas de reportagem, continuando a aventurar-se mesmo nessas condições). A família de Kim deixou saber que a jornalista estava a trabalhar no perfil de Madsen. Nenhum órgão de comunicação emitiu um comunicado sobre o desaparecimento de Kim, como o teria feito caso um jornalista dos quadros tivesse desaparecido.
Não tenho forma de saber se foi o que aconteceu com ela, mas é possível que, enquanto pesquisava a sua história, tenha tido a primeira reação que eu tive quando soube do seu desaparecimento: «ela está perto de casa, na Dinamarca, não pode acontecer-lhe nada de mal».
Uma amiga norte-americana, repórter internacional há muitos anos e com experiência de reportagem em mais de vinte países hostis, escrevia-me hoje: «isto faz-me pensar que a forma louca como fazemos reportagem em zonas perigosas baralha a nossa sensibilidade ao risco em zonas que não consideramos perigosas, zonas que consideramos a nossa casa» E essa forma louca de fazer reportagem, acrescento eu, está relacionada com os maiores riscos que muitos jornalistas correm, especialmente jornalistas freelancer, para ir atrás de uma história com os seus próprios meios.
«Não baixem a guarda em nenhuma situação. Como mulheres, corremos mais riscos, mais vezes».
Olhando para trás e analisando a minha própria experiência, vejo que para reduzir os custos do meu investimento numa viagem acabei por esticar, por vezes, a corda. Se faço reportagem num local que considero seguro, que considero «casa», um local onde não me passa pela cabeça ter de me preocupar com torniquetes e ferimentos de bala – penso agora quando leio a notícia da morte de Kim – nem se quer me apercebo de que estou a esticar a corda. Acrescentando a isso o facto de estar por minha conta e risco, raramente me encontrando na situação de ter de avisar um superior ou um colega do meu destino, penso na quantidade de vezes que saí de casa sem que alguém soubesse dos planos para o meu dia.
Subjacente a tudo isto está, claro, a questão do género. Repito: não sabemos ainda todos os pormenores. Neste momento sabemos apenas que «os braços, as pernas e a cabeça» de Kim foram «mutilados deliberadamente» e que Peter Madsen, que assumiu ter atirado o corpo ao mar na sequência de um «acidente», está em prisão preventiva desde segunda-feira. E sabemos também que quando uma mulher morre em circunstâncias estranhas devemos levar em consideração a possibilidade de violência de género.
Foi perto de casa, na Dinamarca, esse bastião da igualdade entre sexos, que Kim Wall morreu. E é também devido a essas circunstâncias que a sua morte está a abalar de forma tão particular muitas colegas minhas, mulheres jornalistas em todo o mundo.
Numa das sessões do treino de segurança em zonas hostis promovido pela IWMF, uma mulher corajosa que nas últimas décadas esteve nos territórios mais perigosos do mundo, tentou explicar-nos que em reportagem nunca podemos estar descontraídas. Nunca. Há riscos em todo o lado, mesmo na cama de hotel que parece segura. «Não baixem a guarda em nenhuma situação», disse-nos, descrevendo a sua postura numa série de situações, o que na altura, nos pareceu a todas ligeiramente paranóico. Depois acrescentou: «como mulheres, corremos mais riscos, mais vezes». Não gostámos de ouvir esse aviso. Protestámos: «Mas temos direito a fazer as mesmas histórias».
Sim, temos direito a fazer as mesmas histórias. Mas talvez possamos aprender algumas lições com a história de Kim. Há uma diferença entre uma mulher que entra sozinha num barco para entrevistar um homem e um homem que entra sozinho num barco para entrevistar um homem. E esteja esse barco onde estiver, temos todos de calcular melhor os riscos das nossas escolhas. As mulheres, particularmente, devem calcular esse risco tendo em consideração o ponto de partida da desigualdade.
Percebo agora que a hostilidade coletiva com que reagimos ao aviso de que as mulheres correm mais riscos partiu do nosso medo. Passámos uma semana a assumir em voz alta que não há muito que possamos fazer para evitar uma violação. Aprendemos técnicas para lidar com o trauma psicológico que fica depois. E foi isso. Quando o pânico tomou conta de algumas de nós, a resposta por parte dos formadores foi um silêncio carregado de compaixão. Conhecemos todas o significado desse silêncio. Somos mulheres e escolhemos esta vida. Essa escolha tem consequências.
No momento em que conhecemos o desfecho da história de Kim, um batalhão de mulheres corajosas faz a única coisa que sabe que pode fazer: oferece solidariedade. E essa é para mim a lição mais importante de todas: esteja esse barco onde estiver, mulheres e homens não devem ter receio de assumir a vulnerabilidade de uma profissão que frequentemente nos deixa vulneráveis. Nenhuma história no mundo vale a nossa vida. A conclusão dos e-mails e dos telefonemas de hoje é só uma: «Os riscos estão sempre lá». «Tenta calculá-los melhor.» «Tenta preparar-te melhor e espera que tudo corra pelo melhor.» «E liga a alguém a dizer onde vais estar!!!!» Parece pouco, mas para quem faz e quer continuar a fazer este trabalho, o consolo é só este: não estamos sozinhas.