Refugiado. Victor Tavares tinha 10 anos quando se sentiu, pela primeira vez, refugiado. Semanas antes de completar o 11.º aniversário, viu a colónia portuguesa onde nascera, Timor, tornar-se um país independente. Timor-Leste. Séculos de ocupação – motivada pelo negócio do sândalo e pela ideia grandiosa de um Portugal quase infinito, que começava no Minho e chegava aos confins do Pacífico – terminavam em novembro de 1975, numa declaração unilateral de independência. Timor-Leste, finalmente? Ainda não: em Dezembro desse ano, a Indonésia, cruzada na luta anticomunista da Guerra Fria, invadiu o pequeno território. Timor tornava-se a 27ª província do país.
Victor Tavares tornou-se refugiado a poucos quilómetros da sua aldeia, Memo, junto à fronteira. Em Builalu, a vila indonésia onde agora vivia, via as movimentações dos contingentes militares. «Era muita chuva e muitos soldados a passar. Passavam canhões, morteiros. Dois dos meus irmãos mais velhos foram obrigados a ajudar os militares a transportar os materiais.» E ouvia os sons da guerra. «Vivemos debaixo de tendas com cobertura de palha e folhas de palmeira e daí ouvíamos o barulho dos canhões, os tiros, as metralhadoras. Era um campo de concentração.» Um ano depois, atravessou de novo a fronteira em direção a casa, mas, como nada restava de Memo, mudou-se com a família para a cidade de Maliana, onde adquiriu «a consciência da luta» e da causa da independência. «Assistíamos aos indonésios a capturarem os membros das Falintil (Forças Armadas de Libertação e Independência de Timor-Leste), a castigar, a matar. Houve matanças indiscriminadas.»
A passagem à clandestinidade só chegaria mais tarde, já estudante na Indonésia. Durante a ocupação, alguns dos melhores alunos timorenses foram selecionados para continuar a educação superior na Indonésia, graças a bolsas de estudo oferecidas. «Era para passar a mensagem: “Nós não colonizamos, estamos a educar e a alfabetizar” », diz Victor Tavares, em tom crítico. Em 1987, foi um dos escolhidos, o que implicou mudar-se para Bali, onde passou a frequentar o curso de Economia na Universidade de Udayana. Foi aí que, em 1989, se juntou à Renetil (Resistência Nacional dos Estudantes de Timor-Leste), passando a fazer parte do departamento de economia dessa organização clandestina, onde angariava fundos para apoiar a resistência.
O dia 12 de novembro de 1994 ficará para sempre gravado na memória – e na vida – de Victor. Três anos depois do massacre no cemitério de Santa Cruz, que pôs a luta pela independência de Timor-Leste nas bocas do mundo. Da prisão, Xanana Gusmão, comandante das Falintil, mobilizou os jovens estudantes timorenses espalhados pela Indonésia para uma manifestação em Jacarta. A poucos quilómetros da capital indonésia, em Bogor, decorria uma cimeira dos países da APEC, Cooperação Económica Ásica-Pacífico. O presidente indonésio Suharto era o anfitrião. Bill Clinton estava presente. Bem como tantos outros líderes de potências mundiais. E hordas de jornalistas. O momento perfeito para colocar Timor de novo na agenda política e mediática.
Foi com esse objetivo em mente que centenas de timorenses apanharam comboios ou se fizeram à estrada em direção a Jacarta. Muitos ficaram pelo caminho, travados pela polícia secreta indonésia, INTEL. Juntamente com trabalhadores timorenses, os estudantes desfilaram junto à embaixada dos EUA em Jacarta, empunhando cartazes onde se exigia o «Fim do genocídio em Timor-Leste» e a «Libertação imediata de Xanana Gusmão e dos restantes presos políticos». O protesto era pacífico, garante Victor, na altura com 30 anos, mas, ainda assim, as forças de segurança indonésias «cercaram e atacaram» o grupo de manifestantes. Sem terem para onde correr, 29 deles olharam para cima.
Avisaram-nos de que se ultrapassássemos aquele espaço podíamos ser mortos a tiro.
O muro da embaixada dos Estados Unidos estava mesmo ali, com a vedação de grades de ferro aguçadas e a promessa de liberdade dentro de um país hostil. A América à distância de uma escalada. Durante a fuga, alguns dos 29 manifestantes ficaram feridos. Depois de terem começado por expulsar o grupo com o argumento de uma entrada ilegal, os seguranças delimitaram o perímetro de onde os 29 não poderiam sair. Um círculo de corda no chão. «Avisaram-nos de que se ultrapassássemos aquele espaço podíamos ser mortos a tiro.» Victor lembra-se de olhar à volta e detetar «vários marines prontos a disparar». O grupo, munido de uma carta de Xanana Gusmão endereçada a Bill Clinton, informou os seguranças de que só deixariam a embaixada quando os EUA, «que não impediram a Indonésia de invadir Timor Leste», interviessem junto de Suharto para que este retirasse do território. Se os EUA concedessem asilo aos elementos do grupo, isso seria um sinal positivo para a resistência. «Podemos morrer aqui, mas não sairemos sem resolver o problema de Timor.»
Confinados a um círculo de corda, cercados pelos seguranças norte-americanos de um lado, pelas tropas indonésias do outro e pelos jornalistas, que entretanto perceberam que era mais importante apontar os microfones e as câmaras para as grades da embaixada do que cobrir a cimeira em Bongor, os timorenses resistiram durante oito dias ao relento, sob forte pressão. «Ficámos ali no círculo de corda. Durante o dia ali, durante a noite ali, dormíamos ali, chovia e nós estávamos ali. Um de nós apanhou uma doença esquisita. Estávamos rodeados de lixo e ratos e ratazanas e não tínhamos nada com que tapar o corpo.»
A situação agravou-se, com situações de doença e discussões sobre os passos a tomar. Nessa altura, o presidente Mário Soares ofereceu apoio ao grupo sob forma de acolhimento em Portugal. No dia 20 de novembro, oito dias depois do assalto à embaixada, os timorenses decidem aceitar a proposta. Aí, tudo mudou. «Assim que aceitámos a vinda para Portugal, dentro de uma hora mudaram-nos para o interior da embaixada. Deram-nos leite, sumos, fruta.» Ainda hoje Victor fica confuso com a mudança no tratamento. «Se isso tivesse acontecido no início, não tínhamos aceitado vir para Portugal. Ficávamos ali cem anos, até a questão de Timor Leste ser resolvida. Mas nas condições em que nos encontrávamos tínhamos de aceitar.»
Ficámos ali no círculo de corda. Durante o dia ali, durante a noite ali, dormíamos ali, chovia e nós estávamos ali. Um de nós apanhou uma doença esquisita. Estávamos rodeados de lixo e ratos e ratazanas e não tínhamos nada com que tapar o corpo.
O grupo deixou a embaixada a 24 de novembro, 12 dias depois da invasão. Uma carrinha da Cruz Vermelha escoltou-os até ao aeroporto, onde apanharam um avião para Lisboa. Aterraram na Portela no dia 25 e foram recebidos por representantes da comunidade timorense em Portugal e alguns funcionários da Segurança Social. Na véspera de Natal, conheceram Mário Soares no Palácio de Belém. Divididos por residências na zona de Lisboa, os 29 timorenses contaram com a assistência da Segurança Social, que lhes deu alimentação, roupa e 15 mil escudos mensais (cerca de 75 euros). Depois, seguiu-se o curso intensivo de língua portuguesa de que necessitavam para continuar os estudos.
No momento de inscrição na Faculdade, o estudante teve uma desilusão, que continua a lamentar, vinte anos depois. Aquando da invasão da embaixada em Jacarta, Victor era finalista de Economia. Faltava-lhe pouco para concluir o curso e obter o diploma. Em Portugal, não lhe foi dada equivalência. Teve de começar de novo e escolheu inscrever-se na licenciatura em Sociologia no ISCTE. Mas também não concluiu essa licenciatura. Em 1999, a situação política em Timor alterava-se dramaticamente e a família de Victor foi apanhada no meio da história, mais uma vez.
Depois de a Indonésia ter concordado com a realização do referendo sobre a independência de Timor, a campanha avançou a todo o ritmo e Victor Tavares, mesmo à distância, deixou-se contagiar pela sensação de que não seria possível travar o fim da ocupação. Votou em Portugal e acompanhou a divulgação dos resultados pela televisão e pela rádio em setembro: 78% de votos a favor da independência. «Foi um alívio enorme… Aquilo esteve a acumular durante tantos anos e depois explodiu. Consegue imaginar como foi? Foi uma alegria…». Mas interrompe-se logo de seguida: «Curta». Dias depois, a milícia anti-independência, com o apoio do exército indonésio, deu início a uma campanha de terror e violência. Um quarto da população deixou o território e cerca de mil timorenses foram mortos – entre eles um primo de Victor, enterrado vivo .
Em 2001, Victor Tavares casou com Margarida Godinho, uma portuguesa que conheceu anos antes, nas atividades que a resistência timorense levava a cabo em Portugal. Regressou a Timor no ano seguinte para rever a família, após quase dez anos. Em 2005 nasceu Alexandre, e em 2009, o então presidente do Parlamento Nacional, Fernando Lassama de Arroujos, convidou Victor para trabalhar no seu gabinete. Victor aceitou e mudou-se com a família para Timor-Leste. Em 2014 foi nomeado adido do comércio de Timor em Portugal. «Nesse momento não quis vir», diz Margarida. «Integrei-me tão bem, aprendi a língua. Quero muito voltar para Timor. Gosto muito daquilo e há tanto para fazer…» A mulher demonstra uma paixão irrequieta pela história do país e conta de trás para a frente a sucessão de acontecimentos, como se tivesse sido protagonista dos mesmos. Identifica os momentos e as personagens das fotografias espalhadas pela casa da família, no Restelo, e completa os relatos que o marido faz da invasão da embaixada como se falasse do filme preferido.
Depois de uma vida a sonhar com um país independente ou a sentir-se refugiado, Victor não poderia recusar o pedido do tão desejado novo país. «Para qualquer timorense, não há palavra para contrariar trabalhar aos interesses do povo.» A pose é diplomática e a linguagem ao mesmo tempo oficial e emocional. «Não me importo de estar em qualquer lado do mundo, desde que trabalhe para o povo timorense.»