Quando José Costa retira da carteira o comprovativo de residência permanente no Reino Unido, a discussão na Casa do Benfica de Vauxhall, um bairro de Londres, desvia-se por momentos da textura gordurenta dos pastéis de nata preparados com massa tenra e da impossibilidade de fazer bom pão em Inglaterra «por causa da água».
O documento azul oficial é ao mesmo tempo invasivo e digno de reverência, merecendo logo um silêncio submisso, ainda que hostil. Mas naquele canto português da capital britânica, a submissão fica à porta, sujeita à ininterrupta chuvinha londrina e ao vento que destrói os chapéus-de-chuva.
«Olhe que esse cartão aqui não vale nada», diz Nazaré Lopes, empregada no café. «Os sírios lá na América não tinham o Green Card? De que lhes valeu?» José Costa diverte-se com o mau-humor e os queixumes da portuguesa e desvaloriza o aviso. Trabalha em Londres há 26 anos, paga impostos, nunca dependeu de «ajudas do Estado», não lhe há de acontecer o que aconteceu aos sírios e a outros nos Estados Unidos, banidos pelo presidente Donald Trump, diz.
Apesar de ter chegado ao Reino Unido há mais de duas décadas, o condutor dos típicos autocarros vermelhos de dois andares só pediu a autorização de residência permanente depois do referendo de 23 de junho de 2016, quando 52% dos britânicos decidiu sair da União Europeia (EU). O português de 46 anos, natural de Mangualde, previu o resultado que surpreendeu muitos em todo o mundo.
Antes do referendo, José atuou em Lit-Tlehampton com o rancho folclórico Flor da Madeira, de que é presidente. Quando ouviu na audiência gritos de «fucking foreigners», soube que os ingleses votariam maioritariamente pela saída. Nos últimos meses, os ataques de que nunca tinha sido vítima passaram a fazer parte da normalidade.
«O meu accent não é britânico e metem-se comigo por isso. Quando chamo à atenção um passageiro que não validou o passe ou anuncio que o percurso termina antes do previsto, ouço de tudo: “O seu inglês é péssimo. Não devia estar aqui” ou “Volta para a Polónia”, se me confundem com um polaco.» Mesmo assim, José está convencido de que não será forçado a pedir a nacionalidade britânica para continuar a poder residir no Reino Unido. «Não acredito nada que mandem embora pessoas que estão aqui há quase trinta anos.»
O grupo de emigrantes reunido em torno da recém-chegada autorização de residência permanente de José Costa rejeita a ideia de pedir o mesmo documento e não quer ouvir falar de dupla nacionalidade. Ao contrário do motorista de autocarros, não parecem excluir cenários mais dramáticos e decisões governamentais inesperadas. Apenas dizem não ter dúvidas quanto à atitude a tomar perante uma eventual interdição a viver e a trabalhar no Reino Unido. «Se me mandarem embora, compram-me o bilhete em first class na TAP», diz Nazaré Lopes.
Antes do referendo de 23 de junho de 2016, quando muitos ainda pensavam que a saída do Reino Unido da União Europeia era improvável, o governo português aconselhou os portugueses residentes no Reino Unido há mais de cinco anos a requisitarem a autorização de residência permanente.
No dia seguinte ao voto que ditou o divórcio entre o Reino Unido e a UE, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro, afirmou que aqueles que cumprissem os requisitos deveriam solicitar também a dupla nacionalidade.
Em outubro, a primeira-ministra britânica Theresa May expressou a vontade de acionar o artigo 50.º do Tratado de Lisboa no final de março de 2017 e acentuou a retórica antimigração que já tinha tido um papel central na campanha pelo brexit, mas havia sido protagonizada por Nigel Farage e o Partido da Independência do Reino Unido, UKIP.
Nos meses que se seguiram ao referendo, o Ministério da Administração Interna britânico deu conta da subida dos crimes de ódio no Reino Unido. E se durante a campanha a xenofobia era dirigida aos migrantes muçulmanos e a cidadãos não europeus, depois do referendo os ataques tiveram como alvo também cidadãos europeus.
A eleição de Donald Trump nos EUA e a possibilidade de uma vitória da Frente Nacional, de Marine le Pen, em França, alimentam os receios de que uma onda xenófoba possa acarretar complicações para as vidas dos emigrantes no Reino Unido depois da saída da UE.
É neste clima de incerteza que se encontram os cerca de 500 mil portugueses a viver no país que foi o principal destino da emigração nacional nos últimos anos. Perante a incerteza, há quem confie na política britânica, há quem queira ser pragmático e peça a nacionalidade e há quem rejeite viver num país onde a xenofobia está à vista de todos.
Em setembro de 2016, Miguel Costa fez o juramento de fidelidade à rainha Isabel II, cantou em coro o hino nacional do Reino Unido, God Save the Queen, e tornou-se oficialmente cidadão britânico. O arquiteto de 41 anos viveu 13 anos em Londres sem sentir necessidade de pedir cidadania, mas em fevereiro de 2016, quando já só se falava do referendo à saída da União Europeia, tomou uma decisão pragmática e deu início ao processo de adotar a nacionalidade britânica. Ao mesmo tempo, Miguel planeava também a saída do Reino Unido e a mudança para os Emirados Árabes Unidos.
Hoje, o arquiteto luso-britânico, natural da Póvoa de Varzim, vive e trabalha no Dubai e visita frequentemente Londres e Portugal. A mudança de vida vai permitir-lhe, para já, suspender a relação de «amor/ódio» que diz ter com Londres e com os ingleses há mais de uma década. A cidadania britânica garante-lhe a possibilidade de reatar a relação sempre que necessitar.
«Estou muito ligado àquele país e aprendi muito com os ingleses. O Miguel que saiu de Portugal era a versão 1.0. Aquele que viveu em Londres é a versão 2.0. No início aborrecia-me o céu, cinzento e uniforme, como se vivêssemos sob um teto muito baixo. Em Portugal as nuvens são espessas e tridimensionais, revelam vários tons de azul… Mas acabei por encarar a meteorologia de forma pragmática. Como o tempo é deprimente, temos poucas razões para pensar no mundo exterior. Concentramo-nos mais no trabalho.»
Ironia subtil e praticamente impercetível, sarcasmo português refinado ao longo de uma década, humor britânico quase perfeito. «Tenho nacionalidade e passaporte britânicos e isso não significa que não tenha orgulho em ser português. Não quero ser julgado como emigrante num país onde passei uma parte importante da minha vida. É conveniência pura. Aprendi isso com eles.»
No protesto contra a visita de Theresa May a Washington e a esperada visita de Donald Trump a Londres que juntou milhares de pessoas em frente à residência oficial da primeira-ministra no dia 30 de janeiro, Francisco Calafate deu por si a questionar-se: «Estás a falar para quem? Quem és tu?» O sociólogo de 44 anos vive em Londres há 13 anos, dá aulas na Birkbeck University of London, na Goldsmiths e Brighton University, e é pai de duas crianças filhas de mãe inglesa, de quem se separou entretanto. Quando der início ao processo de adoção da cidadania britânica fá-lo-á, em primeiro lugar, pelos filhos.
«Com a minha situação familiar seria muito complicado não poder entrar no Reino Unido quando quisesse.» Uma reflexão paralela, mas mais demorada leva-o a associar a cidadania britânica à necessidade pessoal de envolvimento político. «Estar num país, ser afetado pelas eleições e pelas decisões do governo desse país e não poder participar fazem-me sentir diminuído.»
Foi isso que sentiu na manifestação junto ao número 10 de Downing Street. Francisco não encara a participação política como algo que se restringe ao espaço físico de cada país, antes um dever global de cidadãos globais. Por isso não distingue entre a participação na democracia portuguesa e a participação na democracia inglesa ou no sistema político de outro país onde escolhesse viver. Nesta visão do mundo, os passaportes são ferramentas. E as emoções atrapalham.
«Quando comecei a falar com portugueses sobre pedir a cidadania inglesa alguns reagiram como se eu estivesse a trair a pátria ou nunca mais fosse voltar a Portugal. Mas para mim, pedir a nacionalidade inglesa não é uma questão religiosa. É ter um cartão de sócio. Acordo aqui todos os dias e preciso de um cartão para entrar em alguns sítios. Para criticar a instituição monárquica, por exemplo. Faço-o com maior à vontade se for cidadão britânico.»
Se o processo de adoção da nacionalidade for para a frente, Francisco encontrar-se-á na posição de jurar fidelidade à rainha de Inglaterra, tal como fez Miguel Costa. «É uma performance simbólica que poderá vir a ser complicada. Mas pior é não poder ter posição de todo. Os meus filhos adoram a rainha e a mim preocupa-me que eu como pai não possa guiá-los, não possa levá-los a pelo menos questionarem essa adoração. Se não te podes queixar, se não podes ser crítico, se não podes ter uma relação de amor/ódio com o país onde vives, não estás verdadeiramente integrado.»
Para já, Francisco assume alguma confusão relativamente à burocracia do processo. Apesar de estar há 13 anos em Londres, só os últimos três parecem poder contar para a autorização de residência permanente, primeiro passo para a obtenção da cidadania. Nos anos anteriores esteve em situações fiscais irregulares ou como bolseiro, não descontando para a segurança social, o que, acabou por descobrir, é um obstáculo para conseguir a oficialização da residência. O sociólogo encontra-se num impasse, sem saber o que fazer para pedir a cidadania.
Vitoria Nabas, advogada brasileira que trabalha com a comunidade portuguesa no Reino Unido, diz que a maior dificuldade que os seus clientes enfrentam na hora de pedir a residência permanente está precisamente relacionada com o não pagamento de impostos. «Aqui trabalha-se muito com dinheiro na mão. Pagar impostos atrasados é muito caro. Depois de legalizar a sua situação, começa a contar os anos de residência a partir do zero», diz a advogada.
A insegurança de Francisco Calafate é intensificada pelos custos do processo e por histórias que circulam como a da holandesa que recebeu um aviso de deportação quando, após 24 anos de residência no Reino Unido, decidiu pedir a cidadania, solicitando primeiro a autorização de residência permanente. O organismo equivalente ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras do Reino Unido – Home Office – retificou a situação e cancelou a ordem de deportação, baseada num erro burocrático.
No início de janeiro, o Home Office tinha recebido cem mil pedidos de residência permanente, deixando o aviso de que o processamento destes pode levar até seis meses. Apesar da morosidade do processo, Vitoria Nabas aconselha todos os que estão há mais de cinco anos a residir no Reino Unido a pedir a residência permanente. «É a única garantia de que o cidadão vive aqui. Todos podem dizer que vivem aqui, mas se isso não for confirmado pelo Home Office não vale de nada.» E se até à ativação do artigo 50.º qualquer cidadão da EU pode continuar a entrar no Reino Unido como turista, há um total desconhecimento sobre o que acontecerá depois de março deste ano, lembra a advogada.
Deborah Benros passou semanas a recolher contas de eletricidade, extratos bancários, recibos de vencimento e a compilar uma lista com todas as entradas e saídas no e do Reino Unido nos últimos cinco anos para pedir o mesmo documento. A arquiteta portuguesa de 37 anos recebeu a autorização de residência permanente quase nove meses depois de ter feito o pedido, a 22 de junho de 2016, um dia antes do referendo.
O marido reagiu à notícia por mensagem telefónica. «Parabéns?», respondeu. Na véspera do referendo estava absolutamente decidida a seguir todos os passos para pedir a cidadania britânica. Os colegas portugueses na Foster and Partners, uma das maiores firmas de arquitetura do Reino Unido, reagiram com espanto. «Comprei casa em Londres, casei aqui, não vou brincar com isto», respondeu-lhes na altura.
Deborah jogou pelo seguro, mas não acreditava que os britânicos votassem pela saída da União Europeia. Agora, com o processo do brexit em curso e no dia em que recebeu o documento que oficializa a sua residência no país, reproduz a dúvida do marido, um cidadão holandês descontente com o resultado do referendo e que exclui a hipótese de abdicar da sua nacionalidade para poder adotar a britânica.
«Agora tenho doze meses para pensar se peço a nacionalidade. Nunca pensei que eles saíssem mesmo. Escolhi viver em Londres porque viver e trabalhar lado a lado com pessoas de todo o mundo era auspicioso e interessante. Gosto da multiculturalidade. A partir do momento em que me apercebo de que as coisas não são como eu pensava, questiono se este é o melhor sítio para ficar. Nos dias que se seguiram ao brexit, um vizinho disse-me que não deveria preocupar-me, que comprei casa, que não terei problemas. Foi simpático, conheço-o há algum tempo, mas fiquei convencida de que tinha votado pela saída. Nunca tinha percebido que os britânicos toleram a emigração, mas não gostam dela.»
Na casa de Deborah nada está decidido. Entretanto, a arquiteta vai-se familiarizando com o processo pelo qual terá de passar antes de se tornar britânica. «Vou ter de fazer um teste de história e cultura do Reino Unido, cantar o hino, jurar fidelidade à rainha…», começa, antes de o colega Daniel Rodrigues a interromper. «Eish… Não faças isso…» A conversa fica suspensa.
Todas as expressões do rosto de Deborah transmitem hesitação e confusão. Daniel, de 38 anos, vai deixar Londres e o Reino Unido no fim da primavera para montar uma firma de arquitetura com a mulher dinamarquesa em Copenhaga. «Já há algum tempo que pensava mudar de estilo de vida, mas o resultado do referendo ajudou a decisão. No dia a seguir acordei, pensei no meu futuro e a primeira reação não foi ir a correr buscar os papéis e adotar a nacionalidade britânica. “Tenho de sair daqui e ir para um sítio onde seja mais bem aceite”. Foi isso que pensei. Faz-me confusão estar num local onde os estrangeiros não são bem-vindos.»
As consequências do brexit multiplicaram-se como ondas de choque no dia que se seguiu ao referendo. David Cameron pediu a demissão às primeiras horas da manhã. A libra atingiu mínimos de trinta anos. As televisões e os jornais deram conta de histórias de arrependimento e de confusão por parte de britânicos que votaram pela saída do país da UE.
As ruas da capital londrina transformaram-se num campo de batalha após um derby desportivo, com adeptos de ambos os lados a buzinarem euforicamente junto a Westminster ou a acamparem no local, semblante pesado, bandeiras da União carregadas sem vigor, cabeças, troncos e membros cobertos de tinta azul celeste e purpurinas douradas. «Liberdade!» e «Estamos fazer o luto» ouviam-se em simultâneo, montanha-russa de emoções entre o triunfo e a depressão.
Cátia passou esse dia trabalhar e a imagem que reteve foi outra. A de Nigel Farage a dar o dito por não dito. Afinal, não seria possível investir as contribuições comunitárias semanais – a campanha pela saída da UE avançou o número de 350 milhões de libras, valor desmentido pelos principais órgãos de comunicação britânicos – no NHS, o Sistema Nacional de Saúde britânico, anunciou o antigo líder do UKIP, quebrando uma das principais promessas da campanha pela saída da União.
Na equipa de cuidados intermédios do hospital Royal Brompton, onde Cátia Joaquim trabalha, 60% dos enfermeiros são portugueses. Os outros serviços terão uma percentagem equivalente, diz. Britânicos são poucos. Estima-se que mais de 55 mil médicos e enfermeiros dos 1,2 milhões de trabalhadores do NHS sejam cidadãos da UE.
A entrevista a Farage, que liderou uma campanha centrada no discurso anti-imigração, ocupou as conversas dos enfermeiros nesse dia. «Uma colega alemã veio ter comigo e disse que nunca iria pedir a cidadania. O sentimento geral foi esse – se não nos querem cá, porque havemos de ficar?»
Nesse dia, Cátia decidiu: ia regressar a Portugal. Aos 31 anos e depois de cinco a viver e trabalhar em Londres, a enfermeira está remotamente à procura de casa e emprego no país onde nasceu. Acredita que o mercado de trabalho para enfermeiros melhorou desde que saiu devido à situação precária que tinha – recibos verdes num hospital no Barreiro, rendimento insuficiente para garantir a independência dos pais. «Ganho muito menos em Portugal, mas se fizer as contas ao que ganho e gasto aqui, as vantagens de estar no Reino Unido são mínimas. E em Portugal estou em casa.»
Fala como se estivesse pacificada com um país onde não encontrou condições de vida digna há cinco anos. Parece até ter encontrado motivos de orgulho em Portugal, onde o discurso xenófobo não está à superfície. «O Algarve é inglês há tanto tempo e nós não nos importamos.» Se os ventos na Europa e no mundo parecem soprar na mesma direção, visto de Londres, Portugal parece um oásis de sol, estabilidade e tolerância.
Cátia nunca pensou em pedir a cidadania britânica, apesar de poder fazê-lo a partir de junho, quando celebrará cinco anos no país. Planeava regressar a Portugal só depois da reforma. Confrontada com a mudança de tom político e mesmo sem trabalho garantido em Lisboa, o futuro em Portugal ganha também outro valor. Ao dar a notícia a uma das pacientes que acompanha, a britânica de 85 anos perguntou-lhe com tristeza e apreensão: «Se vocês forem todos embora, o que vai ser de nós?» Cátia quis dizer-lhe «Vocês votaram…», mas respondeu-lhe que era tempo de pensar «em ter qualidade de vida».
GUIA PARA ADOTAR A CIDADANIA BRITÂNICA
Para desencadear o processo de pedido de nacionalidade britânica é necessário obter primeiro a autorização de residência permanente. O documento é atribuído aos cidadãos estrangeiros que há cinco anos vivam e paguem impostos no Reino Unido. O formulário para a residência permanente tem noventa páginas e exige do candidato detalhes como as datas das viagens e os endereços de residência dos últimos cinco anos. Custa 65 libras [75 euros] por pessoa. Quando um cidadão recebe a residência permanente mas vive há mais do que seis anos no Reino Unido pode avançar diretamente para o pedido de cidadania britânica. Se o cidadão vive apenas há cinco anos no país, tem de aguardar um ano antes de requerer a nacionalidade. O processo de naturalização envolve um teste de inglês, um teste sobre cultura, hábitos e História do Reino Unido e custa 1236 libras (cerca de 1500 euros). Depois de aprovado, o candidato torna-se cidadão britânico numa cerimónia oficial em que jura fidelidade à rainha de Inglaterra e canta o hino nacional britânico. O pedido do passaporte vem depois da naturalização e custa 85 libras (cem euros). Informações em aqui (residência permanente) ou aqui (cidadania).