António Vieira da Silva tem uma editora em casa, mas está a ficar sem espaço. Não é possível entrar no quarto ou na casa de banho sem contornar as centenas de caixas de cartão que empilhou no hall de entrada. São dezenas de milhares de livros de capas brilhantes, com ilustrações coloridas, fotografias de gaivotas ou silhuetas na praia e com títulos como Encruzilhadas da Vida, O passar dos dias ou A Força dos Ideais, escritos em letra serifada.
A empresa Edições Vieira da Silva surgiu porque António tinha o sonho de fazer livros. Em Março de 2011, decidiu pôr o seu sonho ao serviço de pessoas com outro sonho — o de escrever um livro — e montou um negócio. Diz que os lucros são mínimos e que, depois de pagas as despesas com a revisão, paginação, impressão, distribuição e promoção, consegue tirar um ordenado para ele e para a mulher, Ana Vieira da Silva, que está encarregue da área comercial.
Em apenas dois anos, a editora reuniu cerca de 200 autores e publicou mais de 150 títulos.
Com os livros oferecidos perdi dinheiro mas isto também é um hobby. As pessoas não pensem que se ganha nestas situações
José António Ribeiro, 68 anos, sonhava desde criança ter um livro publicado. Viu esse sonho adiado duas vezes. Antes do 25 de Abril foi impedido pela censura. Em 1977, perdeu uma colecção de 100 poemas quando lhe assaltaram o escritório. Só depois de se reformar, em 2008, é que voltou a pensar na poesia. Depois, encontrou as edições Vieira da Silva na lista telefónica. Conheceu outros editores e chegou a ter um poema publicado numa antologia de outra editora, mas é fiel à casa: “O António é um bom homem”.
Para ter os seus dois livros publicados, o antigo técnico oficial de contas gastou 500 euros de caução por cada edição. Tal como ficara combinado, se vendesse 50 livros (cada um a 10 euros) na sessão de lançamento, não ficaria a dever nada à editora. Como vendeu cerca de 30 cópias de cada um, ainda teve de pagar 400 euros no total. Nas duas situações ficou com cerca de 70 exemplares. Vendeu quase todos e ofereceu alguns. “Com os livros oferecidos perdi dinheiro mas isto também é um hobby. As pessoas não pensem que se ganha nestas situações.”
Normalmente, a forma mais segura de um autor reaver o dinheiro da caução é vendendo um determinado número de exemplares do livro aos seus amigos e familiares. “O ideal era que os autores não pagassem para publicar, mas chegamos às livrarias e o livro não vende”, lamenta António Vieira da Silva.
José António Ribeiro está pouco preocupado com o dinheiro e muito orgulhoso dos seus livros. “É uma grande alegria. Um regozijo constante. Sinto saudade da vida que foi vivida e que é expressa aqui”, diz, nostálgico enquanto folheia A Vida, o Amor e o Poema, o seu primeiro livro. Mas é a segunda obra — Foi por ti que amanheci — que o deixa verdadeiramente entusiasmado: “Sem vaidade nenhuma, digo que este é um excelente livro de poesia”. E para o provar, José António, “o poeta do amor e de Lisboa”, lê pela terceira vez ao longo da conversa, em tom solene, os seus versos. “A madrugada de tantos sóis que há em ti
E que no teu amor senti… / Rompe o crepúsculo da saudade/ Que não tem idade / E chega ao paraíso dos sonhos / No amor de gestos risonhos / Onde o amor desejado te espera / Com a força e fúria de outras eras”.
“Já houve quem me dissesse: ‘Tomara muitos poetas com nome na praça escreverem como tu’”.
António Vieira da Silva lê todos os livros “a posteriori, devagarinho” e não tem dúvidas sobre a qualidade da sua editora: “Sei que somos bons. Queremos ser os melhores e temos de primar pela qualidade”. No início, aceitava todas as propostas que lhe chegavam por email. Isso mudou. “Agora já não publicamos tudo o que nos aparece”, garante o editor, que recorre aos números para ilustrar a mudança de atitude da empresa: “Desde Janeiro de 2013, recebemos 524 propostas de livros. Recusámos cerca de 25%”. A avaliação dos originais cabe a três colaboradoras, responsáveis pela sua aprovação ou rejeição. Quais são os critérios que determinam se um livro é ou não publicado? “Em primeiro lugar o português tem de ser correcto. Depois, tem de ter uma boa construção frásica. E claro, a história tem de ter um princípio, um meio e um fim”. António Vieira da Silva tem “total confiança nas suas colaboradoras”, mas admite que já lhe aconteceu ler um livro e pensar: “A pessoa que fez esta avaliação espalhou-se ao comprido”.
O ideal era que os autores não pagassem para publicar, mas chegamos às livrarias e o livro não vende
Uma vez recebeu um livro que estava escrito como um SMS e que “foi automaticamente recusado”. Acontece com frequência perguntarem-lhe que género de livros é que se está a vender mais. Esta questão é incompatível com a devoção de Vieira da Silva. Fica indignado e não responde. “Alguém que pergunta isso não quer mesmo escrever um livro”. “Há pessoas que escrevem porque sentem necessidade de transmitir aos outros o que lhes vai na alma. E há muita gente que quer editar um livro por vaidade. Escrevem por escrever.” A sua missão é publicar os primeiros e rejeitar os outros.
O envolvimento emocional dos autores na criação dos seus livros é tão grande que Vieira da Silva já ouviu muitas vezes: “É como um filho”. Então, há que despir a pele de editor e passar “a ser parteiro”.
A Editorial Minerva, criada em 1927, e que em 1947 publicou o romance de estreia de José Saramago, Terra do Pecado, passou, nos anos 90, a dedicar-se essencialmente ao desenvolvimento de autores desconhecidos. De acordo com Ângelo Rodrigues, responsável pelo departamento de novos autores, ser desconhecido “não tem nada a ver com ter mais ou menos qualidade”.
Há duas modalidades para publicação de livros na Editorial Minerva. Os livros podem ser patrocinados por bancos, juntas de freguesia, autarquias ou outros particulares. Ou então o autor paga para publicar. Um livro de poesia ou de contos com cerca de 100 páginas e com 1000 exemplares pode custar 2500 euros. “Se percebermos que temos um autor com pernas para andar e um livro vendável”, diz Ângelo Rodrigues, faz-se uma contra proposta: a 2ª edição será suportada pela editora e acordam-se direitos de autor.
A avaliação dos originais cabe a três colaboradoras, responsáveis pela sua aprovação ou rejeição. Quais são os critérios que determinam se um livro é ou não publicado? “Em primeiro lugar o português tem de ser correcto. Depois, tem de ter uma boa construção frásica. E claro, a história tem de ter um princípio, um meio e um fim
A Editorial Minerva organiza ainda antologias poéticas onde o autor paga para ser representado. Se quiser ter dois poemas nessa colectânea, paga 50 euros (em duas prestações) e recebe cinco livros. Para publicar dez poemas, paga 150 euros (também em duas vezes) e tem direito a 25 livros.
Durante alguns anos a Minerva esteve sozinha no mercado dos autores desconhecidos até aparecerem pequenas editoras que, segundo Ângelo Rodrigues, copiaram o seu funcionamento e os tipos de regulamentos usados.
Gonçalo Martins quer ser o director da “editora que mais vende em Portugal”. Em 2008 criou a Chiado Editora para autores desconhecidos e não para livros “que os editores querem ler”. O objectivo da Chiado é publicar o maior número de livros possível. Só no ano passado editou 700 — no mesmo ano, a Porto Editora, a Sextante Editora e a Assírio & Alvim publicaram no conjunto, na área da literatura, 120 títulos. No grupo Leya, a Dom Quixote publicou perto de 130 novos títulos e a Oficina do Livro, 79.
O catálogo é generalista. Nenhum tema é excluído à partida. Os livros sobre a guerra colonial eram suficientes para criar uma colecção à parte. Mas também há livros de poesia, romances, um livro de receitas afrodisíacas e várias obras sobre religião. Quando lhe perguntamos sobre a qualidade dos livros, responde com uma pergunta: “O que é a qualidade, em primeiro lugar?”. O conceito de qualidade é subjectivo, diz. “Já publicámos livros excepcionais e outros que para mim não têm grande interesse como o diário de um adolescente”. Para Gonçalo Martins, o importante é “não ter o preconceito de que se não és conhecido és lixo”.
Actualmente, a Chiado Editora conta com “vários autores mediáticos”, como Paulo Futre, que esta semana lançou Futrinho, a Lenda — Toda a história de Paulo Futre ilustrada!, um livro infanto-juvenil, e o humorista (da SIC Radical) Rui Sinel de Cordes. Mas continua “a ter uma vocação especial para autores desconhecidos”.
Ao escritório da Chiado Editora chegam, todos os dias, 20 originais. Na maior parte dos casos são pessoas que querem ter um livro publicado e entram em contacto com a editora. Os livros são distribuídos por oito editores, que “estudam o assunto: quem é a pessoa, de onde vem…”. Tal como explica Gonçalo Martins, muitas vezes a decisão de publicar depende mais “da capacidade de mobilização do autor do que da qualidade da obra”.
Na Chiado Editora, o autor não paga uma caução, mas compromete-se a comprar uma parte dos seus livros. Se for feita uma edição de 500 livros, 20% são adquiridos à partida a um preço inferior ao preço de venda. Esses livros passam a ser responsabilidade do autor, que pode vendê-los, oferecê-los ou ficar com eles. Se, na altura da publicação de um segundo livro, a primeira obra do autor tiver vendido os 500 exemplares, a Chiado publica o livro sem exigir ao autor a compra de um determinado número de cópias. “A Editora fica satisfeita se não perder dinheiro. É melhor se o autor conhecer muita gente.”
Por vezes são as editoras que, apercebendo-se do potencial de um autor para atrair compradores, convidam pessoas que descobrem nas redes sociais. Foi o caso de Alberto Silva, 38 anos, que desde pequeno anda com um caderno onde escreve aquilo que lhe vai na cabeça. Alguns desses pensamentos acabaram no blogue Carabina Vermelha. António Vieira da Silva descobriu-o e ficou convencido de que tinha encontrado um poeta. “Nunca me tinha passado pela cabeça escrever um livro. Eu nem achava que o que estava ali era poesia, mas o António convenceu-me: ‘Vai escrever um livro de poesia’. Foi assim que em 2011 surgiu o seu primeiro livro, DeMências, poemas ou algo parecido, cujo título reflecte a incerteza do autor que então surgia. Depois disso publicou Labirinto de nós, na editora Alfarroba.
E existem rivalidades. Quando Alberto Silva anunciou nas redes sociais que ia aventurar-se no romance, Gonçalo Martins antecipou-se à Vieira da Silva. “O Gonçalo disse-me: ‘Não faça nada com o livro que eu quero vê-lo’”. O romance Branco ficou pronto num mês e Alberto enviou-o para a Chiado. Branco é um romance sobre a angústia de perder a pessoa amada. Uma “viagem alucinada entre o amor e o ódio, que varia entre o branco da pureza e do amor e o negro da loucura”, explica-nos o autor. No final, há um bónus: uma secção de poemas que prolongam a dualidade cromática do livro e que se intitula Negro.
Muitas vezes a decisão de publicar depende mais “da capacidade de mobilização do autor do que da qualidade da obra
Gonçalo Martins quis publicar o livro e enviou um email ao autor a demonstrar o seu entusiasmo pela futura obra, elogiando “o romance extremamente sensorial”, que provoca no leitor “uma assepsia sufocante”.
Alberto Silva não teve de comprar os seus próprios livros desta vez, mas também não consegue dizer quantos livros vendeu. Não está interessado no dinheiro, garante. Para ele, viver da escrita seria impensável. Fá-lo apenas por prazer e porque quer chegar às pessoas: “Se gostarem do que eu escrevo — o que eu acho um pouco estranho porque a escrita é complicada — óptimo!”. Acha que a grande vantagem destas editoras é a de estarem receptivas a “coisas diferentes”, já que nas outras mais conhecidas “não se perde um dia” a ler o trabalho de “alguém que esteja a começar ou que goste de escrever”.
“Todo o conceito da Chiado assenta numa ideia de liberdade”, declara Gonçalo Martins. Por isso mesmo, nesta editora, o trabalho de edição dos textos varia muito. Depende da vontade do autor. Há quem recuse que o seu livro seja alterado. Há obras em que se muda muita coisa. Para o director da Chiado, é melhor assim: “Há uns anos o editor quase que era dono do texto. O mercado vai mudar completamente e os autores já não estão disponíveis para fazer esse tipo de cedências”. Até porque “se o editor fosse assim tão bom, era escritor”.
Afonso Batista, 66 anos, publicou dois livros na editora de Gonçalo Martins e, apesar de não descartar a hipótese de voltar a trabalhar com a Chiado, quis outro tipo de apoio: “Precisava mais de um editor e menos de um impressor de livros.”
Se há um livro com qualidade e com possibilidades no mercado e cujo autor esteja disposto a pagar total ou parcialmente para publicar essa é uma opção que pode ser considerada
Tal como José António Ribeiro, só depois de se reformar é que Afonso Batista decidiu recuperar o sonho de criança. Quando era mais novo colaborou com vários jornais e fez crítica literária. Depois começou a trabalhar na área da banca e a escrita foi posta de lado ou ia directamente “para a gaveta”.
Por ser especialista em gestão de recursos humanos foi convidado pela Livros d’hoje e escreveu Descubra o líder que há em si. Mas Afonso Batista queria ser autor de um romance. Foi assim que surgiu a sua colaboração com a Chiado Editora, primeiro com o livro de poesia A voz das pedras, em 2011 e depois, em 2012, com o romance A indiferença é morrer com a solidão aos pés da cama, um livro sobre o abandono e a solidão de idosos no momento da morte, que teve um prefácio de Urbano Tavares Rodrigues e foi apresentado por Luís Osório. Segundo o autor, o livro recebeu muitas críticas positivas e merecia uma distribuição e uma divulgação que não teve: “Foi quase inexistente. Lamentei que não tivessem posto o livro na FNAC”. Gonçalo Martins explica que a Chiado Editora tem um contrato com a FNAC, a Bertrand e a Book it em que estas livrarias se comprometem a ter os livros disponíveis para encomenda, mesmo que não o tenham fisicamente nas lojas.
A partir dessa experiência, começou a olhar para as coisas de outra forma. “Há um trabalho de edição do livro que é todo um processo de análise, verificação e introdução de alterações para que o livro possa ser melhor e atrair o leitor”, diz Afonso Batista. Papel que a Chiado não desempenhou: “O trabalho de edição e revisão do texto foi inexistente”, lamenta.
Agora está a escrever um novo romance com outra editora, cujo nome não quer revelar, e está a ser acompanhado por um editor, que detecta erros, sugere alterações e o aconselha a dar mais evidência a determinados diálogos, por exemplo. Depois de acabar irão decidir se o livro vai ou não ser publicado e quais as condições dessa publicação. Pode acontecer que tenha de pagar para publicar o novo livro.
Este modelo não é posto de parte por todos os grandes grupos. “Se há um livro com qualidade e com possibilidades no mercado e cujo autor esteja disposto a pagar total ou parcialmente para publicar essa é uma opção que pode ser considerada”, afirmou à Revista 2 o responsável da comunicação de uma das principais editoras nacionais que pediu para esta não ser identificada.
Já Paulo Gonçalves, da Porto Editora, adianta que esta “nunca foi a área de actuação” da empresa. “Essa questão nunca se colocou”.
Afonso Batista pensa que editoras como a Chiado “beneficiam da situação actual em que toda a gente quer ter livros publicados. O negócio delas é o volume. A receita não é da venda dos livros. Quanto mais autores tiverem para publicar mais lucro têm”. Mas não critica a estratégia — “São negócios…” — e resume-a assim: “A editora ganha dinheiro, o autor paga e os amigos compram”.
Afonso gastou quase 2000 euros por cada um dos livros publicados, uma vez que comprou cerca de 200 exemplares por cada obra. Para recuperar esse dinheiro teria de os vender, mas não o fez, acabando por oferecê-los. “Não é dinheiro que se recupere”.