O rosto de Ruth Arons congela‑se numa expressão de espanto e incredulidade quando lhe dizemos que o debate sobre o acolhimento de refugiados sírios em Portugal tem levantado ondas xenófobas e suscitado alguma oposição, principalmente nas redes sociais. Aos 93 anos, esta judia de origem alemã tem à sua frente vários jornais diários que fazem manchete com os atentados de 13 de novembro em Paris, mas talvez não esteja tão habituada a utilizar a internet. Então, perante a descrição daquilo que se vai escrevendo sobre os refugiados no Facebook e no Twitter, diz apenas: «Não», ficando subentendido que o relato a apanhou de surpresa, como se dissesse «não pode ser». «Tudo o que é ódio e exclusão é altamente censurável», diz depois de abanar lentamente a cabeça em sinal de reprovação.
Ruth sabe bem o que é ser alvo disso. Quando tinha 13 anos, viu a legislação do país onde nascera voltar-se contra ela e a sua família. Em 1935, o Reichstag aprovava as Leis de Nuremberga e os judeus perdiam a cidadania alemã, ficando altamente limitados na sua atuação profissional, no acesso a espaços públicos e na esfera privada, tendo-lhes sido imposta uma série de restrições no relacionamento com não judeus. O pai de Ruth, advogado, foi impedido de exercer a profissão. Ruth e a irmã deixaram de ser aceites na casa de uma amiga onde tinham lições particulares porque o pai desta era funcionário público e temia represálias caso a família se relacionasse com meninas judias. Ao contrário de tantas outras famílias que não souberam ler os sinais, o pai de Ruth compreendeu que estava, de facto, na altura de partir. «O meu pai tinha lido o Mein Kampf. Ele percebeu que não podíamos ficar», diz Ruth. A família Arons decide então atravessar a Europa num carro descapotável. «Vínhamos em passeio, fomos visitar Paris», lembra Ruth, entretida com as memórias dessa viagem. «Quando os meus pais disseram que não voltaríamos à Alemanha ficámos felizes a dançar.»
Deixando para trás o ódio e a exclusão, Ruth encontrou um país do qual «nada sabia», mas que foi amável na hora de a acolher e à sua família, em 1936. Na verdade, são as memórias positivas desse tempo que justificam o seu espanto ao saber que parte da sociedade portuguesa quer agora excluir aqueles que fogem da guerra civil na Síria. Nunca a trataram como diferente? «Nem pensar. Pelo contrário. Havia uma incompreensão absoluta relativamente àquilo que estava a acontecer no resto da Europa. Os portugueses diziam‑nos: “Mas como assim, vocês não são iguais a nós?”.»
Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal foi ponto de passagem para muitos europeus em fuga das perseguições políticas ou raciais dos países ocupados pela Alemanha nazi. Muitos estavam em trânsito para o continente americano. Muitos optaram por ficar. No ensaio Nós, os Refugiados, publicado em 1943, a filósofa judia de origem alemã Hannah Arendt escreve que o «sentido do termo “refugiado”» muda com a questão judaica. É a perseguição aos judeus antes e durante o Holocausto – motivada por questões raciais – que dá um novo significado ao conceito, anteriormente utilizado para designar alguém que «procura refúgio devido a algum ato cometido ou por tomar alguma opinião política». A partir daí, defende Arendt, refugiados passam a ser aqueles que tiveram a «infelicidade de chegar a um novo país sem meios e que tiveram de ser ajudados por comités de refugiados». E portanto, hoje, todos pensamos nesses judeus em fuga como refugiados, ainda que de forma oficial e à luz da lei, Ruth Arons e a sua família não estivessem abrigados pelo estatuto tal como ele é hoje compreendido. Antes de mais, porque tal estatuto ainda não existia. O primeiro instrumento internacional a definir os direitos dos refugiados é a Convenção de Genebra de 1951. Portugal ratificou esse documento, importante para definir aqueles que são ou não considerados refugiados, em 1960.
A discussão em torno da utilização do conceito de «refugiado» por oposição a «migrante» surgiu novamente neste verão perante o fluxo de pessoas em trânsito para a Europa fugindo de conflitos em África e no Médio Oriente. No final de agosto, o site da Al Jazeera anunciava que não iria utilizar o termo «migrantes» para definir essas pessoas em fuga, passando a referir‑se‑lhes como «refugiados». «Não há uma crise de migrantes no Mediterrâneo. O que há é um grande número de refugiados a tentar fugir de situações de miséria e de perigo inimagináveis e um número menor de pessoas que tentam fugir do tipo de pobreza que conduz alguns ao desespero», escrevia Barry Malone, editor do site.
Entre os cinco entrevistados para esta reportagem, dois não tiveram ou não têm ainda o estatuto de refugiado tal como a lei portuguesa o define. Mas isso não impede que se refiram a eles próprios como tendo sido ou como sendo refugiados nem impede que a comunidade que os acolhe os veja como tal e use esse termo. Há uma vertente emocional na utilização dessa palavra que vai além da atribuição do estatuto legal. Ser refugiado significa estar em fuga da guerra ou de perseguições. «Refugiado é todo aquele que foge de perseguição por motivo de raça, religião ou por violação dos seus direitos fundamentais», explica Teresa Tito de Morais, presidente do Conselho Português dos Refugiados.
Para chatear Hitler
Até 1945, a refugiada Ruth Arons esteve sempre pronta a fugir. «Sentia‑me em casa onde estava, mas se os nazis atravessassem os Pirenéus, tínhamos tudo preparado para ir para a Madeira e depois para o Brasil», diz. Uma vez que tinha aprendido francês na Alemanha, a língua portuguesa não representou um grande desafio. Mas tardou a fazer grandes amizades entre as portuguesas. A situação mudou depois do fim da guerra e da entrada na universidade. «Só me senti em posição de igualdade com os portugueses na Faculdade de Letras.» Foi aí que encontrou o futuro marido, Joaquim Barradas de Carvalho. E foi também aí que se tornou crítica da ditadura portuguesa. «Abriram‑me os olhos contra o Salazar e passei à luta antifascista. Era comunista», declara.
Celebrou o final da guerra da Europa sentindo-se já portuguesa. Festejou o fim de Hitler e de Mussolini aguardando esperançosa que isso significasse também o fim do fascismo em Portugal. Tornou‑se amiga de Mário Soares, tendo sido sua testemunha no casamento com Maria Barroso. O filho Alberto Arons de Carvalho foi um dos fundadores do Partido Socialista em 1973. Tudo isto significa que Ruth Arons assistiu da primeira fila a alguns dos momentos mais importantes do século xx português. Agora, com 93 anos, responde sem hesitar: «Sinto‑me completamente portuguesa. Só não consigo dizer os rr.» Mas é quando lhe vemos o rosto iluminar‑se e abrir‑se num sorriso orgulhoso ao referir‑se à Revolução dos Cravos que percebemos que Ruth é portuguesa até ao osso. «O 25 de Abril foi uma coisa fantástica», diz, chutando a felicidade pelo fim da guerra para segundo plano. «O meu filho abriu a porta de casa no dia 24 e disse: “É hoje!” Não dormimos nessa noite, à espera. Foi um entusiasmo tão grande…»
O facto de se sentir portuguesa não significa que tenha abdicado da sua identidade judaica. Diz não ser religiosa, mas faz questão de ser judia. «Assumo que sou judia para chatear o Hitler.» Ser judia, tal como ser comunista durante o fascismo em Portugal, é uma questão de resistência. E Ruth insiste em resistir.
O melhor amigo de Melo Antunes
«O dia inicial inteiro e limpo» de Ruth não terá sido igualmente feliz para Enoir Oliveira da Luz. A ditadura chegava ao fim em Portugal, mas estava longe de terminar no Brasil, de onde Enoir teve de fugir em 1972. Membro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e dirigente sindical, Enoir Oliveira da Luz, também conhecido por Juca, foi alvo de perseguição política num país que vivia sob uma ditadura militar desde 1964, depois do golpe de Estado que afastou o governo de João Goulart. «Comecei a estar sob muita pressão. Acordava de noite e tinha a polícia dentro de casa ou via feixes de luz por debaixo das portas. Mataram o meu cão, cortaram‑lhe as patas… Era um terrorismo psicológico. Nessa altura houve várias prisões e os meus colegas acharam que estava na altura de sair do país», diz.
Enoir Oliveira da Luz e a mulher exilaram‑se em Moscovo, deixando para trás os filhos de 5 e 6 anos. «Foi difícil por causa da língua e porque sabia que não podia voltar ao Brasil tão cedo. Fiquei muito tempo sem ver os meus filhos». No 25 de Abril de 1974, acompanhou as notícias da Revolução portuguesa em Moscovo, junto de algumas figuras do Partido Comunista Português. Em 1975, em pleno PREC, chega a Portugal para fazer campanha de solidariedade para com os presos políticos no Brasil. «Cheguei aqui antes do 25 de Novembro», diz, sorrindo nostalgicamente. «Havia uma movimentação na rua, um interesse enorme em mudar a situação do país.»
Num encontro com a CGTP foi colocada a possibilidade de poder mudar‑se para Portugal. A 16 de fevereiro de 1976 aterrava em Lisboa. «Em Portugal conseguia trabalho nos sindicatos e podia juntar a minha família. Era mais fácil para os meus filhos adaptarem‑se aqui.» Durante os primeiros anos em Portugal, esteve ilegal. Em 1977, a primeira delegação do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) abria portas por cá. Após as independências das ex‑colónias portuguesas era necessário organizar a triagem de refugiados e retornados que regressavam a Portugal. Entre 1977 e 1980, data da primeira lei de asilo portuguesa, os refugiados que chegavam a Portugal eram reconhecidos sob o mandato do ACNUR. Foi nesse período que Enoir pediu o estatuto de refugiado.
E continuou ligado à luta contra a ditadura militar brasileira, dinamizando a causa dos presos políticos a partir de Portugal. Em 1977 resolveu organizar uma «feijoada de solidariedade com o Brasil». «Foi um sucesso. Atraímos mais de seiscentas pessoas. Continuei a trabalhar nos sindicatos, mas achei que havia possibilidade de nos integrarmos de outra forma, divulgando a nossa cultura», diz. Foi assim que surgiu o Brasuca, o restaurante de comida brasileira que durante os anos 1980 e 1990 era sinónimo de Brasil em Lisboa, num Bairro Alto povoado por jornalistas que se tornaram clientes assíduos e amigos de Enoir. Foi o caso de Assis Pacheco e de Eugénio Alves. Com estas amizades, Enoir integrava‑se na sociedade portuguesa, ocupando um lugar central junto da intelectualidade lisboeta da altura. Ao mesmo tempo, a integração facilitava o apoio às suas causas políticas. «Muitas das matérias que saíam nos jornais de cá sobre o que estava acontecendo no Brasil tinham cobertura aqui porque a gente intervinha. Sempre tive amigos que me ajudaram», conta.
Habituado a movimentar‑se nos círculos políticos brasileiros – numa fotografia no Facebook surge, em criança, junto ao presidente Getúlio Vargas, é amigo próximo de Frei Chico, irmão do antigo presidente do Brasil Lula da Silva e o seu advogado é o ex‑marido de Dilma Rousseff –, não tardou a aproximar‑se de algumas das figuras mais emblemáticas da política portuguesa no período que se seguiu à Revolução. «O Conselho da Revolução reunia‑se aqui. O Melo Antunes era um dos meus melhores amigos. Ficou para mim o que ouvi aqui nessa altura.»
Aproveitando a «lei da anistia» promulgada em agosto de 1979 pelo presidente João Batista Figueiredo, e que concedia amnistia àqueles que tivessem cometido «crimes políticos», Enoir regressa ao Brasil em 1985. Ao aterrar é imediatamente detido. «Fiquei nove horas no departamento da polícia política. A explicação que me deram foi que não tinha pago uma multa de trânsito em Portugal, mas vi que tinham um grande dossiê do Serviço Nacional de Informação com o meu nome», diz. Foi libertado e pôde visitar a mãe, que não via há treze anos. Depois disso regressou mais três vezes.
«Sempre que vou ao Brasil os jornalistas e a televisão vão atrás de mim. Sou um histórico.» Fala com orgulho do reconhecimento tardio. E com saudade. Apesar de estar totalmente integrado em Portugal, de viver na mesma casa há quase quarenta anos e de se sentir estimado, nunca conseguiu deixar de pensar que queria viver novamente no Brasil. «Sempre quis voltar. Tenho muita saudade da minha terra. Mas tenho aqui filhos e netos e estas coisas vão-se enraizando. Fica mais difícil.» E pensando nos refugiados sírios que estão para chegar, Enoir reconhece que nem tudo é um «mar de rosas». «Não é fácil não. Quando chegámos não tínhamos familiares nem amigos. É muito difícil ter saudade, querer ir para os amigos, para os avós e não poder…»
O país de Sabina já não existe
Sabina Karamehmedovi não quer voltar ao país que deixou para trás em 1992 quando chegou a Portugal como refugiada, fugida da Guerra dos Balcãs. Essa ideia não a atormenta. Não há nenhum plano de longo prazo para regressar. É que o seu país desapareceu. «Já não existe o país de onde saí. A cidade já não é a mesma, as pessoas que eu conhecia não estão lá», diz, insistindo ter nascido jugoslava e não bósnia. «Não sei o que é a Bósnia. Nunca vivi nesse ambiente. Vou lá como turista, mas não sinto que pertença ali», diz, sem qualquer sotaque, num português irrepreensível, completamente à vontade numa esplanada da Praça da República, em Coimbra.
No dia seguinte a caírem as primeiras bombas perto de Derventa, no Norte da Bósnia, a família de Sabina Karamehmedovi fugiu para a casa do avô a quatrocentos quilómetros dali, em Split, na Croácia. Com 12 anos, Sabina não compreendia por que razão, de um momento para o outro, o seu país acordava em guerra, dividido entre antigos amigos que agora deixavam de se falar. O pai de Sabina era muçulmano e a mãe sérvia, mas como ambos eram ateus, a questão religiosa nunca tinha sido um assunto em casa. Só na Croácia começou a aperceber‑se das diferenças. «Quiseram pôr-me numa escola à parte. Para os meus pais não fazia sentido sermos refugiados no nosso próprio país. Foi por isso que decidiram que tínhamos de sair.»
Ao abrigo da missão Crescer em Esperança, que acolheu cerca de cem refugiados desse conflito, Sabina, a irmã Dragana e a mãe Vesna chegaram a Portugal em setembro. O pai chegaria uns meses depois. Sabina diz que esqueceu quase tudo dessa viagem, mas não consegue esquecer o «barulho horrível do avião militar» que as trouxe até ao aeroporto de Figo Maduro.
Os primeiros tempos não foram fáceis. «Não fiquei feliz por termos saído. Viemos sem o meu pai e não tínhamos aqui ninguém, não tínhamos casa. Estranhei a língua, a comida e o clima. Era tudo diferente ». A integração foi facilitada devido a um casal de Soure que, depois de ter lido uma entrevista à mãe de Sabina, os convidou para viver em sua casa. Os pais aceitaram. Olhando para trás, Sabina pensa como deve ter sido difícil para eles aceitar a ajuda de dois adultos. «Eles pagavam a comida, a roupa, as despesas, o material escolar.» Mas não foi só este casal que ajudou a família jugoslava. «Toda a comunidade se mobilizou. Os professores davam‑nos horas extra de português; encontraram emprego ao meu pai num armazém e conseguiram que a minha mãe trabalhasse como arquiteta», lembra Sabina, que é neste momento voluntária na Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), impulsionada por Rui Marques, que já tinha estado por detrás da campanha que trouxe famílias dos Balcãs para Portugal e que agora organiza um novo esforço de acolhimento dos refugiados sírios. Esta jovem de 35 anos que estudou Arquitetura em Coimbra e casou com um português tem falado em escolas e para outros grupos, apontando a sua integração como um exemplo de sucesso e procurando esclarecer dúvidas. «Percebo o receio, mas acho que é pura ignorância a falar. Toda a gente tem medo do desconhecido. Mas não acredito que o povo português consiga dizer que não e não se mobilize», diz, insistindo: «Não acredito. Não com tudo o que fizeram por mim e pelos meus pais.»
A firma de arquitetura onde Sabina trabalhava foi tendo cada vez menos trabalho e no verão a jovem ficou desempregada. Até ao fim do ano vai procurar trabalho em Portugal. Se nada aparecer, terá de deixar o país. «Adoro Coimbra. Comprámos uma casa para recuperar. Tínhamos tantos planos… Não me consigo imaginar a viver noutro sítio», diz, com tristeza, lamentando que tantos jovens portugueses estejam na mesma situação. Apesar de este ser um assunto que a incomoda, Sabina fala com alguma tranquilidade. «Não é como a guerra em que não se tem alternativa. Trata‑se de procurar uma vida melhor. Na altura tivemos de sair porque não tínhamos hipótese. As pessoas não conseguem compreender o que é fugir de uma guerra.»
Um desafio permanente
O romeno Pavel Salca chegou a pensar viver na antiga Jugoslávia, depois da queda do ditador Ceausescu. «Quando ele morreu pensámos que a Roménia ia ficar melhor, mas nada mudou.» A economia já frágil entrou em colapso e não era fácil encontrar emprego. Na altura, muitos romenos procuraram melhores condições de vida fora do país. Pavel, de etnia húngara, tinha a vida mais complicada devido às tensões entre a minoria húngara na Roménia e a restante população. «Quando entrava num mercado e ouviam o meu sotaque, não me atendiam. Sempre tive dificuldades. Mesmo quando andava na escola – ia jogar à bola e mandavam‑me embora. Sentia‑me sempre muito triste», diz.
Pavel começou a procurar trabalho fora da Roménia. Na mesma altura em que Sabina deixava a sua casa, o romeno atravessava a antiga Jugoslávia de comboio e testemunhava um dos períodos mais negros da história europeia recente. «Via as pessoas a serem baleadas e a morrer.» Tentou trabalhar em França, mas não conseguiu. Até que conheceu emigrantes portugueses. «Conhecimentos e negócios…», diz, para explicar a escolha de Portugal.
Chegou em 1994 com 29 anos e pediu estatuto de refugiado. Teresa Tito de Morais explica que apesar de a maioria dos romenos em Portugal serem imigrantes, no início dos anos 1990 foi concedido o estatuto de refugiado a alguns cidadãos romenos dada a instabilidade que se vivia no país.
À chegada a Portugal, Pavel chegou a viver debaixo da Ponte 25 de Abril. Tentou ir para o Canadá num contentor, mas foi apanhado. Durante estes tempos difíceis, tal como outros romenos, pôde contar com a ajuda do padre Alexandre Bonito, representante da Igreja Ortodoxa em Portugal, diz o romeno. «Ele dizia‑nos para termos cuidado e arranjava‑nos comida.»
Ainda nos anos 1990, o Ministério da Administração Interna cedeu à comunidade romena um antigo posto da PSP no Poço do Bispo, em Lisboa. É aí que Pavel vive. As pequenas divisões da antiga esquadra foram transformadas em pequenos apartamentos. No total vivem ali dez famílias – cerca de 25 ou 26 romenos, incluindo seis crianças. Os apartamentos são exíguos – essencialmente quartos divididos em sala, quarto e cozinha improvisada. A casa de banho é partilhada por todos. Pavel vive sozinho num «quarto pequenino», e acaba por passar grande parte do tempo com a família de Vasile Bindea, um outro romeno de 35 anos que veio há cinco anos com a mulher para Portugal. O casal teve uma filha, Maria, que tem agora 2 anos. Pavel trata a criança com afeto, pegando‑lhe constantemente ao colo e brincando com ela. «Agora não fala. Quando começar nunca mais se cala», diz, enquanto embala a menina.
As famílias romenas receberam ordem de despejo da Câmara Municipal em janeiro de 2012 e deram entrada em tribunal a uma providência cautelar para contestar a decisão. Pavel acabou por encontrar trabalho numa empresa ligada às telecomunicações. Trabalha no mesmo local há quase 20 anos, dedicando‑se a instalar cabos de fibra ótica, antenas e outras novas tecnologias. Diz que está sempre em viagem. «Saio segunda e venho sexta. Ando sempre com a malinha dentro do carro. Nunca sei para onde vou», diz.
Aos 50 anos, diz que se sente muito bem em Portugal e nem se queixa da ordem de despejo. Conta que já teve oportunidade de ir trabalhar noutro país por mais dinheiro, mas recusou. «Não é só o dinheiro que importa. É um certo respeito que se conquista. Aqui no trabalho já sou respeitado. Se fosse para outro país ia começar do zero.»
Enquanto esperam pelo jantar que a mulher de Vasile cozinha, os dois romenos veem televisão. Um dia depois dos ataques em Paris, Pavel reage às notícias com a consciência de que a situação dos refugiados sírios vai piorar na Europa. Mas não consegue evitar fazer um comentário que denota algum desconforto com a chegada destas pessoas. «Não me arranjam um lugar lá em Penela como refugiado? Casa, comida, sem trabalhar… Eu tenho de trabalhar para me sustentar e mal.»
Teresa Tito de Morais diz compreender o comentário e interpreta‑o, tentando pôr-se no lugar daqueles que pensam desta forma: «Se nós não estamos bem porque é que vêm mais para ficarmos ainda pior?» A resposta da presidente do CPR é esta: «A questão dos refugiados é um desafio permanente – nunca está ganho. Consideramos que a vinda deste grupo maior, e tendo em conta a onda de solidariedade que se levantou no nosso país, poderá criar melhores condições para integrar aqueles que já cá estão há mais tempo e não estão tão bem como desejaríamos.»
A mulher e o dicionário de Russo-Português
Neste momento, o Centro Português dos Refugiados está a apoiar cerca de trezentos adultos e 22 crianças. No total há mais de trinta nacionalidades – paquistaneses, marroquinos, chineses, eritreus, somalis, entre outros. Cerca de metade dos requerentes de asilo ajudados pelo CPR vêm da Ucrânia, onde em 2014 se iniciou um conflito civil.
Uma dessas ucranianas é Olga Itacuru, 48 anos. Olga chegou a Lisboa a 17 de fevereiro de 2014, fugida de Slaviansk. Quando rebentou o conflito entre populações pró-russas e pró‑ucranianas, Olga ficou encurralada. Como trabalhou na Rússia durante cinco anos, é portadora de passaporte russo, do qual não quis abdicar independentemente de a Ucrânia não reconhecer a dupla nacionalidade. Na altura considerou que o passaporte russo dava mais garantias uma vez que os salários pagos na Rússia são mais elevados. Mas num contexto de guerra civil na região onde nascera, esta decisão revelou‑se inconveniente. Olga tentou trabalhar como enfermeira num hospital de Donetsk, mas foi acusada de colocar veneno no soro que era usado para tratar os soldados ucranianos. Olga diz que não a deixaram trabalhar, que a tratavam como inimiga. Era a «bruxa russa». Conta que chegaram a atirar‑lhe ácido à cara e mostra como levou as mãos em proteção do rosto. Depois aponta para as zonas ressequidas no pescoço, que diz serem queimaduras. Decidiu tentar procurar novamente trabalho na Rússia, mas diz que também aí se sentia estranha, apesar de defender a atuação do presidente russo no conflito. «Os russos só queriam defender Donetsk. Não é verdade que Putin tenha atacado a Ucrânia», diz, exaltando‑se e levantando o tom de voz.
Por isso, decidiu fugir. Chegou à Eslováquia num camião frigorífico, transportada de forma ilegal. Aí, uma mulher ucraniana aconselhou‑a a tentar encontrar refúgio em Portugal. «Disseram‑me que havia uma grande comunidade ucraniana aqui e que as pessoas eram muito humanas.» Chegou a Lisboa de comboio e dirigiu‑se à Bobadela. Fez o pedido de asilo e frequentou um curso de português. A comunidade ucraniana, diz, voltou‑lhe as costas por ter passaporte russo. Como o pedido de asilo está ainda pendente, a Segurança Social encarregou‑se do seu caso e recolocou‑a no distrito de Castelo Branco, onde Olga está há dez meses. Pouco tempo depois foi novamente transferida para Alcains.
Recebe mensalmente 250 euros e com esse apoio tem de pagar uma renda de 140 euros para alugar um quarto. Não recebeu a prestação em outubro e teve de recorrer à Cáritas para a ajudarem a pagar o quarto. Diz que se sente muito sozinha numa vila onde muitas casas estão à venda e onde ninguém fala russo. Diz bom dia e boa tarde a quem passa, mas não consegue prolongar as conversas. Passa os dias a arrumar a casa, a passear e a fazer desporto, a colher fruta e a fazer marmelada. Quando tem de se deslocar a Castelo Branco, fá-lo a pé, levando mais de duas horas a percorrer a distância. Mas aquilo que verdadeiramente a perturba é não conseguir continuar a estudar português.
«Estou aqui há dez meses e a vida acabou para mim. Quero estudar língua portuguesa para poder trabalhar, mas aqui não há escola.» Leva‑nos ao quarto onde dorme para nos mostrar o pequeno dicionário de russo‑português e as gramáticas elementares com as quais se esforça por aprender português sozinha. Uma das responsáveis da Cáritas de Alcains que a acompanha disse‑nos que Olga teve uma oferta de emprego como auxiliar de dentista, mas foi rejeitada por não falar a língua.
Apesar de ser tratada por refugiada na comunidade que a acolheu, Olga não tem ainda o estatuto oficial. Se este não lhe for atribuído, Olga não pode ser devolvida ao país natal, de acordo com a lei de asilo portuguesa. Tendo deixado tudo para trás, Olga não tem para onde regressar. «Eu era inimiga na minha terra natal, mas também era uma pessoa estranha na Rússia», diz. «Não quero voltar para a Ucrânia. Quero tentar trabalhar em Portugal.»
Olga está sozinha, não fala com ninguém, não tem dinheiro para contactar a família, mal o tem para viver. E, no entanto, é com veemência que diz querer ficar. Esforça-se, ao dizê‑lo, por utilizar uma ou outra palavra em português, como se quisesse mostrar que merece, que está a lutar por isso. Mantém a casa limpa e arranjada, todos os dias se senta a desenhar as curvas do alfabeto latino, vai devolver todo o dinheiro que lhe foi emprestado. Que levará alguém a querer ficar, completamente sozinha, num país desconhecido e em crise? A resposta vem das palavras de Sabina Karamehmedovi: «As pessoas não conseguem compreender o que é fugir de uma guerra.»