Jorge Cabral, 68 anos, estava a atravessar a estrada. Um carro conduzido por um homem de meia-idade acompanhado por três crianças passou por ele. Talvez nesse momento andasse mais devagar do que o normal porque de dentro do carro o homem berrou-lhe: “Sacana do velho! Já deves anos à cova.”
Só há três ou quatro anos é que descobriu que era velho. Nessa altura ainda exercia advocacia e era professor universitário. Enquanto esperava na fila do bar da Universidade Lusófona ouviu uma aluna perguntar a uma colega: “O velhote de Penal já chegou?”. O velhote de Penal era ele. Durante os 38 anos que ensinou Direito Penal não se lembra de ouvir alguém perguntar pelo “jovem de Penal”. “Terei perdido o nome?”, pensou. Jorge Cabral não se sente velho e não percebe porque é se fala de velhos e novos quando “somos todos contemporâneos”.
“Está a criar-se um gueto. É como se de um lado estivessem as pessoas e do outro uma raça à parte — a dos velhos”.
Jorge Cabral nunca tinha ouvido o termo idadismo mas foi disso que falou. À semelhança de conceitos como o racismo ou o sexismo, o idadismo refere-se às atitudes e práticas de discriminação (geralmente negativa) dos indivíduos com base numa característica — a idade. A discriminação pode afectar diferentes grupos etários. De acordo com Sibila Marques, psicóloga social e autora do livro Discriminação na Terceira Idade, em países como o Reino Unido o idadismo é sobretudo contra as pessoas mais jovens, enquanto que em Portugal atinge as pessoas mais velhas. Alguns autores preferem usar os termos velhismo ou gerontismo para classificar as atitudes de discriminação em relação às pessoas mais velhas. Estas atitudes assumem três formas: a tendência para olharmos para as pessoas idosas como parte de um grupo homogéneo e indiferenciado; o preconceito, o desdém e a postura paternalista face aos mais velhos e, por fim, o abuso e os maus tratos.
A análise dos resultados referidas no capítulo Idadismo do European Social Survey (ESS) de 2009 mostra que quando questionados directamente os portugueses afirmam-se como não preconceituosos contra as pessoas idosas. No entanto, de acordo com este estudo, a discriminação em relação à idade é a principal forma de discriminação sentida pelos portugueses (17%). Para Sibila Marques, a sociedade portuguesa é essencialmente idadista “nas formas mais subtis”, predominando um preconceito mais paternalista em relação aos mais velhos: “Achamos que as pessoas idosas não são muito competentes mas são muito simpáticas — dizemos bem mas pensamos que são um fardo”.
Esta percepção dos mais velhos como um fardo tem várias dimensões. De uma maneira geral, existe a convicção de que os trabalhadores mais velhos roubam lugares aos mais novos. Em economia chama-se “lump of labour falacy” e sugere que há um numero fixo de postos de trabalho na economia e que por isso, em tempos de desemprego elevado, a única maneira de permitir que os jovens possam entrar no mercado de trabalho é facilitar a saída dos trabalhadores mais velhos, explica Amílcar Moreira, investigador no Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa. “A ideia é falsa. Não há um numero fixo de empregos numa economia e expulsar os trabalhadores séniores do mercado de trabalho não abre necessariamente caminho à entrada de trabalhadores jovens no mercado de trabalho. De uma forma geral, os trabalhadores séniores possuem qualificações e skills diferentes das dos trabalhadores mais jovens, e portanto estes não concorrem entre si no mercado de trabalho”, diz o investigador.
Outra ideia feita é que os cidadãos séniores poderão usar o seu peso eleitoral para tentar condicionar a distribuição de despesa social em favor das políticas que os beneficiam directamente – como as pensões ou o sistema de saúde – mesmo que à custa da diminuição do investimento em políticas que beneficiam as grupos mais jovens – como o subsídio de desemprego ou o rendimento social de inserção. No entanto, de acordo com Amílcar Moreira, a evidência científica não suporta essa ideia e sugere duas possíveis razões para que tal não aconteça. Por um lado, os reformados, como fazem parte do grupo de indivíduos que depende do Estado-Providência, poderão estar menos inclinados a apoiar qualquer tipo de corte no Estado-Providência. Por outro lado, os cidadãos séniores – naquilo a que se chama de ‘altruísmo dinástico’ – poderão estar inclinados a apoiar prestações sociais que, apesar de não os beneficiarem diretamente, beneficiam os seus filhos e netos.
Achamos que as pessoas idosas não são muito competentes mas são muito simpáticas — dizemos bem mas pensamos que são um fardo – Sibila Marques
Para além disso, há ainda a questão dos gastos com a população sénior. Em 2012 havia 1,5 pessoas activas por cada pensionista. No estudo do European Social Survey referido anteriormente, 53% dos portugueses consideravam que as pessoas com mais de 70 anos contribuem pouco para a economia e 39% pensavam que os idosos constituem um peso para os serviços de saúde.
“Culpa-se os velhos de tudo: dos problemas na segurança social, de conduzirem em contra-mão…”, lamenta Jorge Cabral, que vê a discriminação contra os idosos em todo o lado — “na comunidade, na família, no trabalho”. Num dos últimos julgamentos que fez antes de se reformar, pediu às testemunhas para falarem mais alto e ouviu da juíza uma resposta que considerou arrogante e ofensiva: “Senhor advogado, porque é que não põe um aparelho nos ouvidos?”. São pequenos pormenores. Subtilezas. Jorge Cabral tem vários exemplos. É a infantilização dos mais velhos nos serviços de saúde: “O velho é tratado como uma criança. Dizem-lhes — ‘Dê cá a sua mãozinha, o seu pézinho e o seu rabinho’. Não percebem que estão perante pessoas com história de vida, com valores e que provavelmente não gostam nada de ouvir ‘o seu rabinho’.” É a uniformização das actividades nos lares: “É como se fosse um menu — ‘Hoje é dia de bife com batatas e fandango’. Como se todos os velhotes gostassem de dançar o fandango.” E são todos os mitos associados à terceira idade — “o velho que cheira mal. O velho que é pedófilo e libidinoso”.
Jorge Cabral tem conhecimento de casos “gravíssimos” de violência física contra os mais velhos. Uma vez, viu uma fotografia tirada por técnicas de um lar que aproveitaram o momento do banho de um idoso para o excitarem. Para além dessas histórias que muitas vezes não chegam aos tribunais, o ex-advogado diz que “basta ser velho e andar na rua” para sentir a discriminação. Ainda que muitas vezes as vítimas não se apercebam do que está a acontecer porque interiorizaram que é assim que as coisas são.
Temos de ensinar a criança a olhar para a pessoa. Quando dizemos às crianças que hoje é dia de irem visitar os velhinhos isto fica marcado na cabeça delas. Começam a pensar que há lugares onde se põem os velhinhos, como se fossem peças de museu
À entrada do Jardim da Estrela, do lado da Basílica, há um pequeno redondo com alguns bancos de madeira. Aí sentam-se todos os dias homens e mulheres, na sua maioria reformados. Conversam, jogam às cartas, refrescam-se das altas temperaturas. José tem essa rotina há 19 anos, desde o dia em que deixou de trabalhar, com 60 anos. “Respeito toda a gente para ser sempre respeitado”. Os amigos que se sentam a seu lado assentem e acrescentam: “Nunca fui mal-tratado” ou “Gosto muito da juventude”. Falam como se tivessem as frases preparadas. Depois, José diz qualquer coisa que muda o tom da conversa. “Às vezes a gente ouve umas coisas, mas não podemos ligar”. O que é que ouvem? José responde: “No outro dia passou aí um grupo de jovens que disse assim: ‘A maior parte do tempo os bancos estão ocupados por esta velhada do…’ e usaram aquele palavrão que começa por ca…”. Os amigos de José assentem novamente: “Ah, isso ouve-se muitas vezes, mas pronto, a gente não liga…”
Ao lado está Luís Amadeu Mendonça Neves, 80 anos, que acabou há pouco a aula de ginástica no Jardim. Luís acha que há uma separação grande entre os jovens e os idosos e tem pena. “Eu admiro a juventude. Tenho de estar ligado à juventude”. Um dia um homem disse-lhe assim: “Olha para esse velho!”. Luís passa a mão pela t-shirt azul, esticada na zona da barriga: “Acho que estava a dizer que eu era barrigudo”. Há uns tempos, viu dois jovens a discutir, um pouco enervados. Um dos rapazes olhou para ele e declarou: “Os velhos deviam morrer todos”. Luís desvaloriza tudo isto: “Quando vejo jovens que não sabem estar desvio-me porque senão já sei que como pela medida grande”.
Sibila Marques explica que muitas vezes estas situações não são vistas como um problema porque desde cedo as crianças se habituam a ver os mais velhos de uma forma inferior: “Aqueles que agora são idosos estão no lugar que eles próprios já estavam à espera de ocupar.” Esta resignação afecta a saúde objectiva da população sénior, alerta a psicóloga social, e tem efeitos na ansiedade, na auto-estima, aumenta os níveis de stress e até a velocidade com que se anda. De acordo com Sibila Marques, a mudança desta mentalidade tem de ocorrer logo nas escolas, uma vez que há estudos que demonstram que desde muito cedo interiorizamos ideias negativas associadas ao envelhecimento.
“Temos de ensinar a criança a olhar para a pessoa. Quando dizemos às crianças que hoje é dia de irem visitar os velhinhos isto fica marcado na cabeça delas. Começam a pensar que há lugares onde se põem os velhinhos, como se fossem peças de museu”, critica Jorge Cabral.
De acordo com Sibila Marques, parte deste problema também está relacionado com o facto de haver uma certa segregação social — as crianças estão na escola, os pais estão no trabalho e os idosos estão nos lares. Para Maria João Valente Rosa, demógrafa e directora da Pordata, uma base de dados sobre Portugal contemporâneo organizada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, numa sociedade inteligente “todos se encontram sem andarem em faixas. Não importa se és velho, novo, se és homem ou mulher”.
Mas para que isto aconteça algo tem de mudar no discurso e nas atitudes dos governantes. Amílcar Moreira acha que “Portugal é um caso claro de aged-based politics”, com alguns partidos a usar a idade como factor de diferenciação política. No entanto, e apesar de o discurso político poder criar algumas clivagens, o investigador pensa que há poucas probabilidades de haver um conflito intergeracional: “Não estamos a observar os jovens a vir para a rua porque as famílias estão a servir de almofada”. A demógrafa Maria João Valente Rosa defende que o discurso político é “totalmente idadista” e que isso ajuda a alimentar alguma crispação, que neste momento é resolvida junto da família, mas que tende a aumentar porque com o tempo o número de activos por pensionistas será menor e as redes familiares transformar-se-ão.
Jorge Cabral está convencido de que a posição do idoso na sociedade sofreu mais com esta crise e com as políticas do Governo: “Esta exaltação da juventude e do empreendedorismo… Dá a impressão de que se não fossem os velhos o país estava bem.”
Sibila Marques pensa que se fosse repetido hoje o inquérito do ESS, os valores do idadismo estariam mais elevados.
O envelhecimento demográfico tem sido entendido como uma catástrofe, o que ajuda a explicar a questão. No livro O Envelhecimento da Sociedade Portuguesa, Maria João Valente Rosa defende que o verdadeiro problema não está no envelhecimento da população, mas no envelhecimento da sociedade, ou seja, naquilo que as sociedades não mudaram desde que começaram a envelhecer. A socióloga, considera ser necessário mudar a forma como pensamos o papel dos mais velhos e como encaramos o trabalho e a formação ao longo da vida. “Temos de pensar: ‘Vou viver mais tempo, provavelmente terei mais do que uma carreira e tenho de investir na formação ao longo da vida”. Também os empregadores têm de se adequar e olhar para o indivíduo e não para a sua data de nascimento: “Nos tempos modernos precisamos de pessoas com capacidade independentemente da idade.”
“Temos de mudar o discurso. Se estamos todos a envelhecer e achamos que os velhos não têm valor, o que é que isso diz sobre o futuro do país? Que o país vai desaparecer”, questiona Sibila Marques.
Para Maria João Valente Rosa mudar o discurso é parar de falar de novos e velhos: “Quero falar de pessoas.”