Para lá da porta envidraçada do Pavilhão 29 do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, no antigo Júlio de Matos, há homens e mulheres com pijamas ou batas de internamento, calças entaladas nas meias grossas, a desfilar em movimentos pendulares. Quando ouvem a campainha que anuncia visitas, interrompem as locomoções sem propósito e aproveitam a oportunidade para falar com quem espera do outro lado.
Mamadou Kouassi centra a atenção numa figura perdida, curvada sobre si mesma, rosto confuso numa expressão tristíssima. Naquela manhã, Emmanuel Gyabaah acordou alheado num país desconhecido, provavelmente nada esperando daquela campainha. Mas ao cruzar o olhar com Mamadou, não teve sequer tempo de se surpreender com a presença do amigo. De repente a postura relaxou e o semblante abandonado abriu num sorriso que pareceu estender-se ao corpo inteiro.«É ele. É o Emmanuel», diz o homem, respiração acelerada quando a adrenalina dá lugar ao alívio.
A médica que com curiosidade nos recebe do outro lado do vidro não entende. «Mandaram o Mamadou de Itália porque um imigrante se perdeu? Em Portugal isso não acontece…»
Conheci Mamadou Kouassi em setembro de 2017 numa viagem a Nápoles onde fui com o propósito de fazer uma reportagem sobre o Movimento de Refugiados e Requerentes de Asilo em Caserta (MMRC), uma cidade a cerca de quarenta quilómetros de Nápoles.
O MMRC é uma estrutura composta por italianos e estrangeiros que lutam há mais de uma década para reverter, junto das autoridades locais, situações de falta de documentos que deixam ainda mais vulneráveis as vidas dos migrantes a viver no Sul do país, particularmente expostos à influência da Camorra, a conhecida organização mafiosa da região da Campânia. Além de conseguirem documentos para viverem em Itália, os migrantes aprendem também a reclamar formas de tratamento mais justas dentro da sociedade italiana.
Mamadou Kouassi chegou ao sul de Itália depois de desembarcar em Lampedusa no início da crise financeira. Mesmo em tempos de estagnação económica, a maior informalidade do mercado laboral no Sul facilita a subsistência, e Mamadou foi encontrando trabalho nas plantações de tomate ou tabaco.
Nos primeiros anos em Itália, Mamadou trabalhou em condições duras, sem receber ordenado. Sozinho num país estrangeiro, o antigo ativista não sabia o que fazer para mudar a situação. Até que ouviu falar do movimento em Caserta.
Para trás ficava o sonho de ser professor de línguas na Costa do Marfim, o país que deixou em 2006 quando a guerra civil e o ativismo político na Universidade de Abidjan se tornaram incompatíveis.
Nos primeiros anos em Itália, Mamadou trabalhou em condições duras, sem receber ordenado ou sendo abandonado à porta de um hospital na sequência de um acidente de trabalho. Sozinho num país estrangeiro, o antigo ativista não sabia o que fazer para mudar a situação. Até que ouviu falar do movimento em Caserta. Após participar no primeiro encontro com o grupo, decidiu juntar-se a um protesto simbólico em que os migrantes se recusaram a trabalhar por menos de 50 euros por dia.
«Estávamos cheios de medo. Para nós, ganhar 20 euros por dia era melhor do que nos unirmos em protesto. Alguns italianos que passaram por nós diziam-nos que também não era fácil para eles. Nós respondíamos que estavam certos, mas que todos podiam lutar pelos seus direitos. Esse dia mudou algo para a maioria de nós porque passámos a ter consciência de que estávamos a ser explorados.»
A maior parte das pessoas ajudadas pelo grupo são migrantes económicos, que, não podendo receber a proteção de asilo reservada a refugiados, acaba por viver sem documentos em Itália.
Apercebendo-se das enormes dificuldades destas pessoas, o movimento de Caserta encontrou uma solução. «A lei italiana prevê protezione umanitaria que é dada àqueles que estão vulneráveis. Nós alegamos que estes migrantes estão vulneráveis porque o facto de estarem ilegais em Itália os deixa expostos a várias formas de exploração», diz Maria Rita Cardillo, uma das responsáveis.
É desta forma que o grupo consegue autorizações de residência para milhares de migrantes. E foi com a ajuda deste grupo que Mamadou obteve também os seus documentos, acabando depois por conseguir um posto de trabalho no Centro Social em Caserta, como mediador cultural. De segunda a sexta-feira, medeia disputas entre os migrantes e a polícia, oferecendo tradução quando esta é necessária. Além disso, Mamadou, que fala cinco línguas, visita escolas locais e ensina francês e inglês a crianças italianas, de certa forma cumprindo o sonho de ser professor.
Ao obterem documentos, os migrantes podem mais facilmente procurar contratos de trabalho e de arrendamento. E a autorização de residência permite-lhes entrar e sair de Itália, onde não se sentem realmente livres até terem a liberdade de movimentos necessária para visitar as famílias nos países de origem.
Emmanuel Gyabaah acabou no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa em parte devido a essa liberdade de movimentos. Depois de conseguir a autorização de residência através do movimento em Caserta, este migrante que vive com outros ganeses num apartamento pelo qual Mamadou Kouassi é responsável, teve finalmente a possibilidade de sair de Itália.
Emmanuel tem um longo historial de depressão e problemas mentais. Uma equipa de psicólogos, psiquiatras e etno-psiquiatras que dão apoio no Centro consideraram que talvez fosse melhor se pudesse voltar ao Gana para ver a família pela primeira vez em mais de dez anos.
Naquele final de verão no Sul de Itália esqueci-me de lembrar que por vezes não é possível ignorar a rede que se estabelece quando indagamos sobre a vulnerabilidade humana.
O grupo em Caserta localizou um ganês que se dirigia para o país na mesma altura e confiou-lhe Emmanuel. Mas, a 6 de janeiro deste ano, durante a escala em Lisboa, os dois desencontraram-se. Assustado, Emmanuel não soube como localizar o voo para Acra e sentiu-se mal. A polícia do aeroporto deteve-o e levou-o para Hospital de São José, sendo daí transferido para o antigo Júlio de Matos.
Num domingo à noite no início de janeiro, o meu telemóvel foi inundado por notificações de WhatsApp. «Precisamos da tua ajuda em Lisboa.» Em setembro do ano passado, ao despedir-me de Mamadou em Caserta, não me passou pela cabeça que voltaria a encontrá-lo. É comum falar com outros jornalistas sobre o privilégio de conhecer pessoas extraordinárias, da coleção de laços rápidos que vamos acumulando pelo mundo fora.
Também é comum falarmos de como esquecemos que ao escrever as histórias dos outros estamos a escrever a nossa história; que quando observamos somos transformados, mas transformamos. Naquele final de verão no Sul de Itália esqueci-me de lembrar que por vezes não é possível ignorar a rede que se estabelece quando indagamos sobre a vulnerabilidade humana.
Quando reencontrei Mamadou na manhã seguinte no aeroporto de Lisboa retomei uma pergunta sobre o processo de integração que ele havia deixado sem resposta meses antes. «Sentes-te italiano?» No autocarro que nos levou ao hospital na Avenida do Brasil, Mamadou refletiu antes de responder. «Bem… namoro há quatro anos com a Maria Rita, uma napolitana. Conheci há pouco os pais dela e… estamos bem. Talvez isso responda à tua pergunta.»
Foi isso que tentei explicar à médica confusa quanto à sorte de Emmanuel. Assim que as portas envidraçadas se abriram para nos deixar entrar no Pavilhão 29, Mamadou dirigiu-se a ele, que mal havia pronunciado uma palavra desde que fora detido no aeroporto.
Coube-me a mim explicar o trabalho desenvolvido pelo Movimento em Caserta e a história de Emmanuel. A psiquiatra Vânia Viveiros informou-nos de que ele estava muito debilitado, sofrendo de delírios que o faziam acreditar que alguém o queria matar em Itália, concluindo que o ganês devia ficar internado em Lisboa durante três semanas.
Disse-nos também que o relatório médico que Emmanuel trouxe consigo estava incompleto e que dada a sua condição não compreendia por que razão os médicos italianos tinham suspendido a medicação antipsicótica.
Mamadou abanou com a cabeça e desabafou que Itália estava uma confusão, sentindo-se seguro pelo profissionalismo demonstrado pela equipa da médica, que se fez acompanhar de uma assistente social, Carolina Lopes, e de dois estagiários. Continuavam surpreendidos com o facto de em Itália alguém ter dado conta de que um migrante entre milhares de migrantes estava desaparecido.
Mamadou explicou a Emmanuel que tinha de ficar internado em Lisboa durante três semanas, prometendo-lhe que voltaria ao fim desse tempo para o acompanhar de regresso a Itália. Emmanuel não chegou a protestar. Disse apenas que gostaria de ficar com Mamadou. Empaticamente, a médica dirigiu-se-lhe: «Emmanuel, disse-me que tinha receio de que o matassem em Itália. Isso é a sua doença a falar. Vai ter de ficar cá para melhorar e depois pode regressar, OK?»
Despedimo-nos com a promessa de alimentar o contacto enquanto Emmanuel precisasse, todos dispostos a ajudar, todos surpreendidos com a solidariedade espontânea gerada em torno de um homem sozinho.
Nas três semanas que se seguiram pensei muitas vezes se esta solidariedade seria possível em sociedades com estruturas formais, com sistemas de apoio aos migrantes mais eficientes, mas também com regras mais rígidas fora das quais se torna mais difícil agir.
Um dia antes da partida, visitei Emmanuel no Pavilhão 29. Deve ter feito amigos naquelas três semanas porque notei o seu à-vontade. Disse-me que gostava de ficar em Portugal, que se sentia melhor ali do que em Itália.
E quando, por força do meu trabalho, me apercebi de que tinha de voltar a Nápoles no início do mês de fevereiro e sugeri ser eu a acompanhar Emmanuel, sem que alguém – em Caserta ou em Lisboa – tivesse levantado um obstáculo, pensei novamente em como o laxismo insular é o nosso maior desafio, mas provavelmente a nossa maior virtude.
Um dia antes da partida, visitei Emmanuel no Pavilhão 29 para diminuir o choque da viagem com uma estranha. Deve ter feito amigos naquelas três semanas porque notei o seu à-vontade. Disse-me que gostava de ficar em Portugal, que se sentia melhor ali do que em Itália.
Acontece frequentemente, garante a assistente social. E conta a história de um paciente alemão que por várias vezes fugiu na véspera de ter alta, apresentando-se posteriormente no hospital para ser internado novamente.
Ao saber da intenção de Emmanuel, Mamadou escreveu-me: «Speriamo che non fa stupidaggine.» (Esperemos que não faça nenhuma estupidez). Mas na sexta-feira da viagem tenho à minha espera um homem inofensivo e tranquilo, ainda que um pouco triste, provavelmente entregue à saudade. O desfile pendular dos outros pacientes, que rodam em torno de Emmanuel, percebendo, pelo saco de plástico que traz na mão, que vai ter alta, adensa a nostalgia.
O enfermeiro de serviço devolve a Emmanuel os bens que trazia quando foi internado – três telemóveis, uma bíblia, uma carteira com cerca de cem euros. Antes de se despedir do ganês, assegurando-lhe que tudo correrá bem, a médica explica-me que Emmanuel leva medicação suficiente para duas semanas, para não ter de gastar dinheiro com um tratamento que é bastante caro.
Por esquecimento não preparei nada para comermos durante a viagem e paro no caminho para me abastecer de pastéis de nata que quero levar para o grupo em Caserta, de acordo com os pedidos insistentes de Mamadou. Não me orgulho de dizer que foi tudo o que comemos naquele dia – pastéis de nata.
Chegados ao aeroporto, há ainda que resolver o problema das malas, retidas aquando do internamento de Emmanuel. A companhia aérea que levou o ganês a Lisboa encarrega-se de enviar a bagagem para Itália. A funcionária do aeroporto que tratou do processo sabia de toda a história e explica-nos com lágrimas nos olhos o que temos de fazer.
Emmanuel não troca uma palavra comigo, nem no aeroporto nem no avião. Não insisto. Quando aterramos em Nápoles, espera pacientemente pela minha mala antes de me perguntar onde está Mamadou. Saímos ao encontro dele e quando os dois se abraçam, Emmanuel ganha uma nova vida. De súbito fala, ri, conta histórias. Protesto: «Mas não me disseste uma palavra…»
Dentro da carrinha vermelha que nos leva a Caserta, os membros do movimento dizem a Emmanuel que a sua casa e a sua cama estão à sua espera. «Se querias ir passear bastava pedires», dizem entre risos. Um dos ativistas avisa que a próxima música é para ele e levanta o volume do sistema de som para enfatizar as palavras de Eminem e adaptá-las a Emmanuel: «Tonight, you’re cleanin’ out your closet.» A carrinha arranca no sentido contrário ao Vesúvio e todos riem à gargalhada. Emmanuel acabou de chegar a casa.
A semi-informalidade no acolhimento a sul
A simpatia para com os que chegam de fora já conheceu melhores dias em Itália. Apesar de o país ser tradicionalmente considerado acolhedor para com os migrantes e requerentes de asilo, algo mudou nos últimos anos. Apesar de o número dos que chegam ter diminuído recentemente devido ao polémico Acordo com a Líbia, existe alguma frustração quanto à incapacidade de o país integrar as centenas de milhares de pessoas que entraram nos últimos 20 anos.
A extrema-direita está a aproveitar esse descontentamento para capitalizar nas eleições deste domingo, tendo carregado no discurso xenófobo e racista. O ataque levado a cabo por um ex-candidato da Liga Norte contra imigrantes em Macerata e o acolhimento de migrantes foram os temas mais discutidos na campanha eleitoral.
Francesco Vacchiano, antropólogo e psicólogo clínico que tem investigado o tema das migrações, primeiro em Itália, país de onde é originário, e recentemente em Portugal, onde fixou residência como investigador do ICS, diz que apesar de tanto em Portugal como em Itália existir um sistema semi-informal no acolhimento e integração de migrantes e refugiados, há grandes diferenças entre os dois países.
«A Itália começou a lidar com este fenómeno nos anos 2000. Portugal está a debruçar-se sobre este fenómeno agora. Em Itália, a semi-informalidade aproveitou uma rede de serviços e um tecido social com uma tradição de trabalho social muito sólida. O plano nacional de asilo em Itália é bom de uma forma geral e há muitos projetos que funcionam muito bem. O problema é que é insuficiente relativamente ao número de pessoas de que necessitam. Além disso, o problema é também do discurso político porque os políticos dizem coisas que não são verdadeiras para ter ganhos eleitorais. Em Portugal, pelo contrário, a semi-informalidade acontece sem que no terreno haja uma estrutura sólida. Portugal comprometeu-se a fazer acolhimento de pessoas, mas o nível de serviços que proporciona é muito baixo», diz.